Este texto faz parte do livro Botões de Hibisco Branco e Outras Histórias, publicado pela Amazon nas versões impressa e digital:
 
Botões de hibisco branco
 
Não me lembro de quem era o aniversário. Todo mundo pronto para sair, com suas roupas de domingo. Meu pai, minha mãe, minha irmã e o noivo. Enquanto a turma acertava os últimos detalhes das fatiotas, eu e a Mirna extravasávamos nossa alegria no quintal. Era a primeira vez que sairíamos juntos. E logo para uma festa, numa tarde ensolarada e quente de domingo.
 
Brincávamos felizes em volta de um pé de hibiscos brancos bem florido e ainda com muitos botões para abrir. Nossa felicidade era tanta que começamos a cheirar as flores. Não satisfeitos, arrancamos alguns botões e os enfiávamos e tirávamos das narinas, puxando pelos pedúnculos. E ríamos com a descabida brincadeira.
 
De repente, entre um espasmo de riso e outro, enfiei muito fundo um botão. O danado entalou e, ao puxá-lo, o cabinho arrebentou. Nosso riso acabou e deu lugar ao desespero. Quanto mais eu tentava tirá-lo, mais fundo o botãozinho entrava. A Mirna batia na parte posterior da minha cabeça em tentativas inócuas de me fazer expelir o estranho.
 
Como não conseguimos por nós mesmos, passado algum tempo ela gritou pela minha mãe.
 
- Dona Joanita, depressa, entrou um botão no nariz do João Carlos.
 
Minha mãe veio o mais rápido que pode. Logo atrás, minha irmã, meu pai e o futuro cunhado.
 
- Mas que botão? Na camisa estão todos. De onde ele tirou esse botão?
 
- Não botão de roupa. Um desses aqui - explicou a Mirna mostrando um no pé de hibisco.
 
- Que brincadeira boba! Vamos tirar isso já.
 
Com a mão direita em pinça apertando as minhas bochechas e a outra atrás da cabeça, minha mãe posicionou meu rosto de forma que pudesse olhar dentro do meu nariz, aproveitando a farta luz do dia.
 
- Aqui não tem nada.
 
- Tem sim, mãe. Estou sentindo lá dentro. Neste buraco aqui, ó - eu disse apontando com o indicador a narina direita.
 
- Eu vi, dona Joanita, quando ainda dava para ver. Depois entrou mais - a Mirna falou.
 
- Estou sufocando, não posso mais respirar. Será que vou morrer?
 
Fizeram fila para tentar enxergar o botão. Cada um apertando com mais força as minhas bochechas. Não dava para vê-lo. Fundo demais. Meu pai foi buscar fumo em corda. Ficou um tempão fazendo-me cheirar o pedaço de fumo negro, na esperança de provocar um espirro. Se espirrasse, empurraria o botão para fora. Era a teoria na qual todos estavam apostando.
 
Nada. Nem uma vontadezinha pequenininha de espirrar. Eu imaginava o maior espirro do mundo e o botãozinho indo pelos ares. Depois, um respirar aliviado, uma quantidade imensa de ar entrando pelas duas narinas. Mas nada. Acho que o fumo era fraco.
 
Tentaram de todo jeito. Só faltou me virarem de ponta cabeça. Mas faltou pouco.
 
Diante daquela tragédia, meu pai cancelou o passeio. Ordenou à minha mãe:
 
- Amanhã leve ele ao médico.
 
Dada a decisão, fomos tirar nossos trajes de domingo. A Mirna foi embora muito triste. Do meio da escada que dava acesso à cozinha, eu a vi indo pelo estreito caminho dos fundos para encontrar do outro lado da rua o portão da casa dela. Toda arrumadinha, de vestido godê cobrindo os joelhos, e sapatos de verniz. Que pena, estraguei a nossa festa, nosso primeiro passeio juntos. Tão alegres e felizes que estávamos...
 
Na segunda-feira, logo após o almoço, minha mãe me levou ao consultório do Dr. Camargo, no Edifício João Alfredo, na Praça Zacarias. Era um dos raros especialistas em ouvido, nariz e garganta da cidade, naquela época.
 
Eu ainda não era capaz de juntar as letrinhas. Nem na escola estava. Mas reparei na entrada do consultório, acima da porta aberta, uma placa com três linhas. Pedi à minha que lesse para mim. Ela leu linha por linha: Dr. Hugo Camargo, na primeira. Na segunda, Médico Otorrinolaringologista.
 
Foi difícil repetir essa palavra esquisita. Fiquei um tempão tentando, sílaba por sílaba, até que saiu, graças à paciência e repetidas correções da minha mãe. Mas demorou.
 
Na terceira linha da placa, minha mãe leu: ouvidos, nariz e garganta. Ainda bem! Se não fosse a tradução, quem saberia que otorrinolaringologista é o médico que trata dos buracos de cima?
 
O Dr. Camargo era muito simpático, brincalhão. Não metia medo. Mesmo assim, claro que eu estava receoso. Tentava imaginar como ele iria fazer para sacar o teimoso botão. Como meu pai tinha uma carpintaria, desde cedo me habituei com as ferramentas do ramo. Alicate, torquês, broca, verruma, pua, martelo etc. Será que o médico usaria alguma parecida?
 
Conversando e fazendo graça, o Dr. Camargo introduziu na minha narina entupida uma pinça pontiaguda. Em poucos segundos e com muito jeito a retirou trazendo na ponta o botão de hibisco com um pouco de sangue. Nem doeu.
 
Voltei a respirar de novo como uma pessoa normal. Quando cheguei a casa encontrei meu pai pronto para decepar o hibisco, temendo que eu viesse a repetir a travessura. Fazia parte do seu temperamento radical cortar o mal pela raiz.
 
Falei que não precisava. Eu havia aprendido a lição e jamais voltaria a colocar qualquer objeto estranho em buraco meu. Ele que sossegasse.
 
Salvei o hibisco.
 
Quanto à Mirna, penso que também aprendeu. Nunca mais voltamos a ousar tanto em nossas traquinices. E dela me lembro com muita saudade. A amiguinha da minha doce infância. Irmãzinha do coração. Por tantos momentos bons, se eu pudesse voltar no tempo, faria o que não fiz. Dar-lhe-ia o mais terno dos beijos na face lisinha. Um que fosse tão puro quanto o branco dos hibiscos daquele domingo e inocente como os botõezinhos prestes a se abrir em flor. Um beijo de criança, um beijo de irmão.
 
 
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Recado do autor para Mirna: se um dia o destino colocá-la diante desta página, feche os olhos, volte a ser menina, incline o rosto com jeitinho e receba, por favor, o meu beijo atrasado.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 23/10/2012
Reeditado em 27/01/2022
Código do texto: T3947476
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