Florzinha
 
Meu pai sofria de uma irrefreável mania de colocar apelidos nas pessoas. E a maioria deles pegava. Não fazia por mal nem para machucar ou denigrir a imagem dos agraciados. Era pura diversão ou mera tirada, bem própria do seu temperamento por vezes espirituoso. Foi assim, por exemplo, que um dos seus empregados virou Chiquita, em alusão à marchinha Chiquita Bacana, de Alberto Ribeiro e João de Barro, imortalizada na voz de Emilinha Borba para o carnaval de 1949 e que seguiu fazendo sucesso em muitos outros carnavais. O rapaz não tinha nada a ver com a história ou personagem da música. Mas o apelido pegou. Outro virou Linguiça, porque era magérrimo e alto. Meu pai o chamou uma vez de Linguiça e ficou assim para sempre. Pouca gente sabia que o primeiro era João e o segundo Antônio.  Quando estavam na carpintaria, acho que até eles próprios esqueciam seus nomes de batismo.
 
O pior é que fez escola. Os empregados antigos passaram a agraciar os novos antes que o meu pai tivesse tempo para fazê-lo. Foi assim com o Aristides. Na sua estreia na carpintaria, um dos veteranos o chamou de Sicupira, lembrando famoso jogador que iniciava sua carreira profissional no Ferroviário, hoje Paraná Clube. Foi obra do Linguiça, boca-negra roxo, para homenagear o ídolo que despontava, e que, ironicamente, anos mais tarde foi encher de alegria a torcida do rival Atlético Paranaense, após ter deixado o clube de origem para defender as cores do Botafogo do Rio de Janeiro e depois o de Ribeirão Preto, em São Paulo.
 
Um vizinho, do outro lado da rua, também foi brindado com a espirituosidade do meu pai. Ganhou o singular epíteto de Florzinha. Não havia nenhuma conotação de comportamento sexual ou gestual no fato. Era somente um jeito de destacar a impecável elegância do moço, tanto na maneira de se vestir quanto na de andar. Um autêntico almofadinha da época. Quase sempre de terno e gravata, andando ereto e cabelo bem cortado. Sapatos cuidadosamente engraxados e lustrados até ganharem brilho de espelho. Pena que as ruas do bairro, naquele tempo, eram todas ensaibradas. Se chovia, cobriam-se de lama. Se fazia sol, a poeira levantava. Mas, para sorte do Florzinha, ele morava a poucos metros do ponto de ônibus, de modo que seus calçados pretos pouco sofriam.
 
Na ótica rude do meu pai, formas tão finas de se apresentar eram dignas de uma flor de pessoa. Portanto, o jovem Ari era uma florzinha e assim foi contemplado: Florzinha. Nunca fiquei sabenodo se ele conhecia ou não o apelido. Acredito que não, pois o rapaz era meio afastado dos comuns, como um príncipe da plebe. Logo, não havia como chamá-lo pelo apelido, penso eu.
 
Não se pode dizer que o Florzinha era mal-educado, mas também não era nenhum primor de educação. Autêntico soberbo, quase não dirigia o olhar para as pessoas, salvo se fizessem parte do seu círculo familiar ou de amizade. Vizinhos fora desses círculos ele sequer cumprimentava. Passava por eles como se não existissem. Por isso, minha mãe dizia que ele era um polaquinho muito orgulhoso, bem diferente dos seus pais e parentes próximos, com quem minha família mantinha certa amizade. Tímido ou retraído também não era. Muitas vezes eu o flagrei na casa de ferragens do tio em animado bate-papo com as primas. Ou então na mercearia de outro tio esbanjando o verbo. Mas nunca com estranhos, embora estranhos ninguém por lá fosse, pois no bairro todos eram conhecidos entre si. Todo mundo sabia quem era quem. Filho de quem, pai de quem, tia ou tio de fulano ou beltrano. Primo do sicrano. Era soberba mesmo, o quinto pecado capital.
 
Florzinha apreciava novidades. Andava sempre nos trinques e na última moda. Quando apareceram as capas de chuva fabricadas com nylon, ele foi o primeiro a substituir a sua de gabardine cáqui por uma cinzenta do novo material. Não sei se fez bom negócio, em termos de qualidade. Mas novidade é novidade e disso ele gostava.
 
Era também muito chegado a um baile. Contavam que ele rodopiava com desenvoltura pelos salões do Clube Rio Branco, dos alemães, e da Sociedade Juventus, dos polacos. E acho mesmo que entendia do riscado, pois uma vez elogiava a competência da orquestra que tocou num destes salões. Na visão dele, os músicos atacavam com fluência e encanto um repertório  que manteve a pista cheia a noite toda. Percebi que ele não falava bobagem. Dircursava de cadeira.
 
Assim que progrediu financeiramente, o Florzinha apareceu com outra novidade. Uma Vespa, motoneta concorrente da Lambretta, fabricada numa única cor. Cinza.
 
Motorizado, o polaquinho ficou ainda mais orgulhoso. Saia todos os dias no pequeno veículo para trabalhar, como se fizesse parte dele. Aprumava-se de terno e gravata completamente teso no assento e lá ia ele, deixando para trás uma tênue nuvem de poeira e olhares admirados.
 
Com a nova aquisição, passou a ter as tardes de sábado comprometidas com a limpeza e conservação da Vespa. Lavava, esfregava, enxugava, passava isso e aquilo. A bichinha ficava tinindo como se tivesse saído da loja. O Florzinha era de fato muito caprichoso. Digno de todos os méritos neste quesito.
 
Mais adiante trocou a motoneta por um carro. Deve ter encontrado o Vanguard mais conservado da cidade. Apesar de já ter uns dez, ou pouco mais, anos de uso, o automóvel parecia recém-saído da fábrica. Preto, bonito. Brilhava tanto que era possível mirar-se nele para caprichar no penteado ou até fazer a barba com a navalha mais afiada, sem o risco de cortar o rosto por falta de visibilidade. Coisa linda aquele carro!
 
Aí, as tardes de sábado passaram a ser insuficientes para deixá-lo limpo da forma que o Florzinha gostava. Dedicava, então, o sábado inteiro ao carro. Lavava, enxugava, tirava a poeira do interior com flanelas e escovas (não me lembro se já existia aspirador doméstico naquele tempo). Depois da limpeza, polidor e cera.
 
Antigamente não havia o produto dois em um, como hoje, ou seja, a cera limpadora. Usava-se um polidor para tirar as manchas e a tinta queimada e depois aplicava-se uma camada de cera protetora. Para finalizar, muque nos panos para dar brilho. Um trabalhão. Mas o Florzinha não se importava. Fazia questão de andar no carro mais limpo e brilhante da cidade. Se não do mundo.
 
Foram meses nesse mister sabatino. De longe, reparei um dia que as laterais do carro já não brilhavam tanto. Semanas mais tarde, vi que não eram mais pretas. Tinham adquirido uma cor cinza opaca. Verdadeira lástima. Um carro tão bonito e conservado como aquele se tornara vítima do capricho doentio do Florzinha. Pois de tanto aplicar polidores químicos, para tirar a camada queimada da pintura, ele acabou removendo toda a tinta. As laterais ficaram praticamente na lata. Esse Florzinha...


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N. do A. - Vanguard ano 1951. Imagem captada na Internet.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 15/10/2012
Reeditado em 28/06/2021
Código do texto: T3933418
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