SOB OS ANDRAJOS V - DÉBORA E MARIA OLÍMPIO

Quem viveu em minha cidade, há mais ou menos quatro décadas, teve a oportunidade de conhecer pessoas especiais que, por ironia do destino, precisavam de ajuda para suas sobrevivências. Eram respeitadas e queridas em nosso meio.

Maria Olímpio e Débora moravam em uma casa bem situada na praça da Igreja Matriz. Eram irmãs. Não tenho conhecimento de suas origens, de onde vieram nem de quem foram seus ancestrais. Conheci-as assim, desde que me entendi por gente. Eram senhoritas de idade avançada, talvez de sessenta a setenta, apesar de aparentarem um pouco mais. Débora tinha sempre um lenço prendendo o cabelo, cobrindo-lhe a testa. Maria usava vestidos de mangas compridas, bastante frouxos e chinelos estragados.

Débora não gostava de sair de casa. Tinha uma pequena oficina de trabalho que ajudava nas despesas. Junto a uma de suas janelas, havia uma mesinha com algumas ferramentas que usava: agulhas, tesouras, fios, linhas, cola, lixas, tachinhas, martelo, uma pequena "sucata" como chamamos hoje, onde realizava seus pequenos consertos ou criatividades. Podemos chamar também, de "reciclagem," termo mais moderno. Até solados de sapatos consertava. Era polivalente. Não lhe faltavam objetos para restaurar, o que fazia com carinho e habilidade. Não esquecia de cheirar, vez por outra, uma pitadinha de rapé, (fumo torrado e moído) que tinha em um pequeno corrimboque feito de chifre, que guardava no bolso da saia. Suas narinas estavam sempre sujas do pó preto do fumo. Esse rapé também fabricava para vender, fazendo a propaganda de que era bom para curar gripe e dor de cabeça porque continha imburana. E era mesmo cheiroso!...

Débora era, o que se pode chamar, pessoa de fibra. Ao saber que eu ia para o colégio interno em S. Benedito, cidade do Ceará, pediu-me para levar duas meias do Padre Cardoso, que havia restaurado. O sacerdote morara em Massapê e estava, então, como Capelão do meu colégio, na cidade serrana. Ao entregar-lhe as meias, Padre Cardoso falou, surpreso: - "Meu Deus! Ainda existe gente honesta no mundo. Faz dois anos que deixei estas meias para conserto. Nem me lembrava mais. Ela ainda continua trabalhando?" _ “Sim, respondi: - Com aquela mesma paciência, amabilidade e um sorriso de felicidade para todos.”

Maria Olímpio, não sei por quê, somente ela usava o sobrenome. Bem diferente da irmã, era inquieta, falava muito e andava quase correndo. Gostava de ir às casas das pessoas conhecidas pedir pontos em rifas de objetos ou arranjar algo para comer. Chegava sempre à hora do almoço. Sua pele era vermelha e ressequida do sol do meio-dia. Não ia todo dia à mesma casa, tinha o dia certo para cada família. Chegava muito cansada, os pés cheios de calos, os poucos cabelos desarrumados sobre a cabeça, uma reclamação de fazer dó: - “Tô esbaforida!... Tô esbaforida!”... Às vezes chorava. Lá em casa, sentava-se no chão da cozinha, perto da mesa onde almoçávamos, ainda que insistíssemos para que se sentasse conosco. Aquilo me doía na alma, mas quase nada podia fazer para amenizar seu sofrimento. Entregava-me a vasilha para pôr a comida, mas não comia, levava para casa. Ao sair, já deixava determinado o dia de vir novamente fazendo a mesma "via-crucis" de cada dia. Ouvi pessoas falarem que pedia comida para alimentar os gatos que criava e por esta razão, às vezes, não lhe queriam dar a esmola. Os bichanos eram muitos e bem gordinhos!... Quando chegava com o alimento, chamava um por um, pelo nome e fazia a festa! Quem sabe, ela própria deixava de comer para dar aos gatos! E ainda criavam gatos! Mas não lhes faltava o carinho das pessoas que as ajudavam de coração aberto, pois esta é uma marca registrada do povo bom de minha cidade.

Sempre achei deprimente, ver pessoas serem vítimas de uma sociedade injusta, onde uns são endeusados por ostentarem certo tipo de riqueza, longe de alcançar o que se chama de luxo e, outros, deslumbram-se diante daquela falsa opulência. A discriminação girava em torno de diferenças de cor, situação financeira e, por incrível que pareça, estado civil.

As duas irmãs eram solteiras, de idade muito avançada, tidas como "moças velhas", (cujo sentido não dá para explicar por se tratar de palavras antônimas). E assim, eram chamadas todas as que se encontravam na mesma situação. Não tiveram a "sorte" de arranjar um marido para lhes dar amparo. Mulher solteira sem cultura, só trabalhava como doméstica, em casa de família, recebendo uma pequena recompensa ou só pela “bóia” sem nenhum direito judicial. Ainda hoje, ninguém quer ser empregada doméstica e até se envergonha, mesmo sob a proteção da lei que lhe dá total cobertura. Uma menina que trabalhava na minha casa, quando falei que assinava sua carteira, respondeu: _ “Não quero porque não vou sujar minha carteira!”... Pior é a situação da mulher casada, sem “cultura,” a que só trabalha no serviço doméstico de sua própria casa, sem nenhuma remuneração, assinar como profissão: “Doméstica”. Ser simplesmente casada, não significa ser amparada...

É muito constrangedor ver uma pessoa no período de sua velhice, ou melhor, "terceira idade," "melhor idade?" ou “segunda idade adulta”, ter que mendigar o pão de cada dia, às vezes sem possuir nenhum teto para morar e, ainda mais, sem ter acesso a um sistema de saúde de boa qualidade. Em que democracia temos vivido?

As protagonistas que tenho a honra de apresentar nesta crônica, com todo respeito, carinho e amizade, eram queridas e respeitadas e pelo menos tinham uma casinha em um ótimo lugar, ao lado esquerdo da Igreja Matriz de minha amada terrinha.

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Maria de Jesus Fortaleza, 21/09/2012.

Maria de Jesus
Enviado por Maria de Jesus em 25/09/2012
Reeditado em 26/09/2012
Código do texto: T3900347
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