SOB OS ANDRAJOS I - SÁ CHICA

Hora da sesta. Hora em que parece baixar um espírito sonolento sobre a terra, provocando um relaxamento geral em tudo que tem vida. Até mesmo nos grandes centros urbanos, onde a agitação faz parte do quotidiano das pessoas, a preguiça do meio-dia se faz sentir no interior dos transportes coletivos, nos ambientes fechados dos escritórios, nas filas de esperas e nos bancos escolares. Nas escolas, a languidez domina a atenção e a assimilação, chegando a causar depressão no rendimento intelectual, o mesmo acontecendo nas escolas das pequenas cidades. Numa cidade de interior, a sesta torna-se mais gostosa e convidativa, motivada pelo silêncio que paira em torno de tudo: das pessoas, dos animais e das plantas cuja folhagem dorme, numa quietude relaxante, ao cálido mormaço do sol que flameja pelo espaço ou sob a maciez de pingos d'água quando no inverno. Não sei por que as pessoas, bem como os irracionais, ao invés de ficarem alegres, ficam sonolentos e tristes após as refeições...

Estou em minha casa, no sertão, numa sesta de verão. Gosto de me sentar em uma cadeira de balanço e fechar os olhos por uns dez minutos, sempre que termino de almoçar. Em minha frente, uma senhora de uns setenta anos dorme tranquilamente. Não é a primeira vez que isso acontece. Quase sempre, à hora do almoço, ela vem pedir para repousar um pouco. Ao aproximar-se de casa, escuto o toc... toc... toc... da muleta em que se apóia para caminhar, pois um AVC tirou-lhe os movimentos do lado direito. Diante da porta de casa, diz com voz suave e segura: "Olá, Mariquinha!" ( É assim que se dirige às mulheres da minha cidade.)

Sá Chica, como é conhecida no lugar, é uma simpática velhinha, de baixa estatura, bem magrinha e de cor negra. Usa vestidos longos, surrados, alguns já remendados; um lenço esconde os cabelos presos em volta da cabeça; traz algumas bolsas de pano a tiracolo, onde coloca as esmolas que consegue de porta em porta; um rosário, no pescoço, demonstra sua fé na proteção da Virgem Maria, que a torna feliz apesar das circunstâncias em que se encontra. Hoje, não quis almoçar. Disse-me que já o havia feito na casa vizinha, anterior à minha e preferiu somente um copo d’água, reclamando do calor. Deitou-se no chão da sala de estar, perto da parede – lugar que sempre escolhe para sua sesta. Ao oferecer-lhe um jeito melhor para se acomodar, respondeu com ternura: "Muito agradecida, Mariquinha. O chão é bom porque é frio." Forrou a cabeça com uma das bolsas e dormiu.

Vendo-a assim, naquele abandono de criança dormindo, com um semblante tranquilo de paz angelical, fico a pensar: Como o destino joga com o ser humano, a ponto de transformá-lo em um pedinte errante, àquela altura da vida, totalmente escravo da boa–vontade das pessoas! Até hoje, não sei de onde veio, se tem família e o que ocasionou a paralisia de todo um lado do seu corpo, que chama de congestão. Conheci-a assim, pedindo esmolas na casa de meus pais, desde que eu era criança. Costumava sentar-se no chão, perto da porta principal, mantendo um leve sorriso que a tornou querida e respeitada por todos. Às vezes almoçava, às vezes só queria descansar um pouco. Claro. Era a hora da sesta. Hora em que a natureza dorme, sob um clima chuvoso na época de inverno, ou sob o calor de um sol escaldante como é no verão em minha cidade.

A pobre velhinha, apesar do defeito físico que a incomoda, enfrenta aquela rotina, indiferente às intempéries. Com a proteção divina, unicamente, restou-lhe um lado sadio que lhe tem ajudado, até hoje, a desafiar os reveses da vida. Não é nada fácil, com esse problema de saúde que a impossibilitou de se locomover normal, ter que batalhar pela sobrevivência. E pensar como tantas pessoas jovens e fortes se entregam à marginalidade, destruindo suas vidas e as de outras pessoas, permanecendo na ociosidade, sem coragem para lutar por uma vida melhor e mais digna.

Sá Chica continua repousando. Sob os pobres andrajos, está uma mulher guerreira e feliz.

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Maria de Jesus Fortaleza, 21/09/ 20i2.

Maria de Jesus
Enviado por Maria de Jesus em 21/09/2012
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