QUASE EM CANA (EC)
15 de Novembro de 1972.
Braziu mais “varemnós” que nunca, tremia sob o jugo de botas que nos "conduziam ao milagre”.
Bastava seguir-se o rumo determinado pelo som das "matracas".
Algumas pessoas ”perdidas” não foram localizadas até hoje.
Em nome do patriotismo e da democracia, houve eleições “livres” para vereadores, no dia da proclamação da “Res pública”, palavra que tem interpretação levemente desviada nestas terras “d’alem mar”.
“Res pública”, para muitos, à época significava e ainda significa, tratar o povo como reses e às escondidas.
Enfim...
Lá estávamos nós, três estudantes colegiais nos divertindo ao final do feriado patriótico.
Desfilávamos, ao custo dividido da gasolina, não em um, mas nos quase cem cavalos do Karmann-Ghia do “de maior” que cumprira, pela primeira vez, o honroso dever cívico de sufragar sua vontade política.
Eu, ainda “de menor”, amassado no espaço que chamavam de banco traseiro.
Rumo a qualquer lugar.
Coincidência cívica ou não, ao passarmos por onde outrora correra, sem canalização, o Riacho do Ipiranga, decidimos parar ao lado do Monumento da Independência, que passara por magnífica reforma em comemoração ao sesquicentenário e estava pleno de luzes e cores. E não tinha as grades que hoje o cercam. Imagem incoerente com o momento aprisionado que vivia a pátria mãe gentil.
Carro estacionado quase em cima dos degraus do Monumento, onde estão, sabidamente, os ossos de Pedro e Leopoldina, diferentemente de vítimas daqueles tempos, sentamos para jogar tempo fora e – por que não? - paquerar ao brilho do possante.
Divisamos uma placa de propaganda de um candidato a vereador do MDB, jogada na calçada.
Durante a ditadura militar, só havia dois partidos: ARENA e MDB.
Politicamente, ou se era a favor ou contra o governo. Contra, devidamente dentro dos limites do AI-5, senão poder-se-ia ser cassado e caçado.
Um dos três, inocente dos tempos que vivíamos, teve a luminosa idéia: “vamos fazer um comício”.
Claro! Em decisão unânime, apropriada.
Armamos o cavalete num patamar do monumento.
Quem discursa?
Sob os aplausos dos dois colegas, comecei a fazer promessas.
Caso ganhasse as eleições, que já acabara, aumentaria o período de intervalo entre as aulas, reduziria a nota mínima para passar de ano. Devo ter falado em entrada de cinema gratuita para estudantes, entre outras sandices típicas das épocas eleiçoeiras.
O Parque era local de namorados e alguns casaizinhos, interrompidos em seus afazeres, se aproximaram... Assim como pessoas que esperavam ônibus.
Começou a juntar gente.
Quando percebemos, deveria ter umas cinqüenta pessoas ao redor.
O colega “de maior” se tocou da mancada e alertou: “Melhor picarmos a mula!”.
Tarde demais.
Sujou! (não lembro o termo da época)
Um carro da Policia Militar – Ufa! Ainda bem...podia ser do Exército – parou e um soldado pediu nossos documentos.
Que documentos?
O único que possuía RG era o “de maior”. Eu e o outro “de menor” só a carteirinha escolar, daquelas que se rasurava grotescamente para entrar no cinema.
Rasurada, é obvio!
Sem noção da ameaça à segurança da nação que havíamos praticado, tremíamos a dar inveja aos bambus que rodeavam o parque.
Felizmente, e provavelmente, nesse dia, gastamos toda nossa probabilidade de ganhar na Mega-Sena, ao perguntarem nossos endereços, um dos três policiais comentou que morara no mesmo conjunto de prédios do “de maior”, que se entusiasmou e arriscou, sem levar cassetada:
Você é filho do seu Francisco?... Sou filho da dona Cidinha... Meu irmão estudou com você...
Alívio! Quebrou-se o gelo...
“Deixa” eles! É molecagem! Sumam daqui!
Na pressa da felicidade, acho que sentamos os três na parte da frente do Karmann-Ghia, de tão apertadinhos que estávamos.
Mal sabíamos o risco que corremos.
Meses depois, ao entrar para a Universidade, comecei a compreender o que se passava na pátria amada.
Entre um e outro espetáculo teatral interrompido em algum canto da USP, devido a um “mal estar repentino” de um dos artistas, conduzido às pressas ao hospital - a platéia igualmente sai às pressas – como presenciei numa montagem da “Invasão de Bárbaros” de Consuelo de Castro, descobri que cheguei a ser fichado no DOPS, por ser dirigente de Diretório Acadêmico.
Felizmente, nunca fui preso.
Mas...quase.
Em 1975, Herzog foi suicidado e começou a escancarar-se os porões da ditadura.
Numa “lenta, gradual e segura abertura” rumo à democracia, a qual, infelizmente, muitos ainda não compreendem a importância.
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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Às Margens do Ipiranga
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