Um tal de Getúlio
 
Eu com cinco anos de idade. Minha irmã recém-casada. O meu cunhado estava de folga na semana. Os dois resolveram visitar um irmão dele que morava em Morretes. Levaram-nos com eles. Eu e minha mãe.
 
Foi a minha primeira viagem de trem. Uma empolgação de fazer dó. Sentado junto à janela, não desgrudava os olhos lá de fora. Na descida da serra deslumbrava-me com a paisagem e passava medo nos túneis. Coisa apavorante. Acendiam-se as luzes do vagão.
 
- Já é noite, mãe?
 
A composição pendurada na rocha, não se via o chão. O resto do trem sumiu na curva.
 
- Mãe, estamos no céu? Este negócio não cai?
 
Mostraram-me o Véu de Noiva. Fiquei procurando a noiva. Quase perdi a beleza da cascata despencando majestosa. Na estação de Banhado, pensei que ia ter de pisar na água e na lama ouvindo o coaxar de sapos e rãs. Nada disso, era só o nome do lugar. Obrigatório o café com leite e o famoso bolinho da graxa. Depressa para não perder o trem.
 
Alguém mostrou uma cruz dizendo que ali haviam matado o barão. O que seria barão? Pelo jeitão solene com que a pessoa falou, devia ser gente importante. Muito mais tarde fiquei sabendo que se tratava do Barão do Serro Azul, fuzilado no km 65 juntamente com outros acusados de revolucionários e traidores. Ele na qualidade de líder do grupo, por ter diplomaticamente poupado Curitiba de males maiores durante a ocupação da cidade pelos gaúchos na Revolução Federalista.
 
A ponte São João. Magnífica. Não esqueceria nunca. Meu nome, festas juninas, fogueira, o céu cheinho de balões confundindo-se com as estrelas. Bombinhas e traques, fogos. Muito pinhão e quentão. Noite de São João. Sou João por sua causa, nasci no mês dele.
 
- Bonita a nossa ponte, São João.
 
Acabou a descida, chegou Morretes. Então é isso? A estação, a praça. Um rio de água limpa, como eram quase todos os rios daquela época. Mais aquele de água da serra, geladinha. Gente pouca e sossegada. Ninguém corria. Ninguém usava gravata.
 
Falaram que o Olavo morava no sítio. Era pegar a estrada de Porto de Cima e seguir em frente. A reta do Porto.
 
Lá fomos nós. Devagar que é longe. Passo ligeiro cansa. Nossa chegada era surpresa. Hoje a gente telefona avisando. Naquele tempo corria-se o risco de bater com o nariz na porta. Paciência.
 
Ainda faltava chão. Morretes ia ficando para trás. Avistava-se ao longe, vinda de lá, uma carroça. Pequenininha na distância. Devagar foi chegando e crescendo. Não era muito mais rápida do que nós. Andamos bastante até ela nos alcançar. Faltava pouco para a entrada do sítio.
 
A carroça chegou puxada por dois cavalos. Meu cunhado minuto antes avisou:
 
- É o Olavo!
 
E era mesmo.
 
- Vocês por aqui! Ótima surpresa...
 
Ele estava louco para contar a novidade. Assim que terminaram os cumprimentos, sapecou:
 
- O Getúlio suicidou-se. Já sabem?
 
Ninguém sabia. Havíamos saído cedo de casa. O fato ocorreu enquanto viajávamos.
 
Quem seria o tal de Getúlio? Um parente, talvez. Ou um notável de Morretes. O dono da cidade? Por que teria se matado? Um tiro no coração. No Palácio do Catete. Só podia ser a casa lá da serra, concluí pensando na edificação bonita, de sótão, à margem da ferrovia. A Casa do Ipiranga, eu soube depois. Mas não era essa.
 
Percorremos o restante do percurso de carroça. Nem precisava, já estávamos quase lá.
 
Enquanto a Nina providenciava o almoço, as crianças foram me mostrar o sítio. As bananeiras, o canavial, goiabeiras. Fruta do conde e carambola. Mamoeiros em profusão. Pés de mimosa. O riozinho e a casinha nos fundos, não muito longe da moradia, caso eu precisasse. Alguns porquinhos num cercado. Galinhas soltas por todo lado. A horta para o gasto, onde galinha não entrava.
 
No meio da tarde, mais um passeio vagaroso de carroça. Meu cunhado e minha irmã levaram-nos até a estação para pegar o trem d a volta. Só eu e minha mãe. O casalzinho permaneceu no sítio mais alguns dias. Não me lembro da subida da serra. Acho que dormi, pois devia estar muito cansado.
 
Alguns anos mais tarde, já na escola, dei-me conta de que aquele foi o dia 24 de agosto de 1954. E que o tal de Getúlio era o presidente do Brasil. O gaúcho que saiu da região missioneira para Porto Alegre e de lá subiu de trem até a capital federal, para assumir na marra a Presidência da República, para a qual havia sido eleito. Depois se tornou ditador e novamente se elegeu presidente, até preferir deixar a vida para entrar na História, a sofrer a humilhação de uma segunda deposição. Para sempre foi o pai dos pobres. E, entre erros e acertos, queiramos ou não, o precursor de um novo Brasil. Após o Estado Novo.
 
 
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N. do A. - Na ilustração, Retrato do Presidente Getúlio Vargas de Estanislau Traple (Curitiba - PR, 1898-1958).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 24/08/2012
Reeditado em 24/08/2023
Código do texto: T3847463
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