Em São Paulo, música antes do Luar da Vila Sônia

A vida não passa simplesmente. Nem poderia. Seria insuportável demais desperdiçar as riquezas do tempo, o calor das pessoas, os aromas, o cheiro do pão ainda no forno com a certeza do café bem quente.

Na casa da Vila Sônia, que virou tão minha, é assim: tem cheiro de bênção.

O meu sogro se foi, pouco depois a minha sogrinha também partiu. Quando ela deu sinais de ir embora chorei tão copiosamente que tenho certeza que os meus vizinhos me ouviram.

Ainda guardo nos meus tímpanos meio fatigados alguns dedos de prosa, a certeza da esperança. Porque a minha sogra rezava não como carola. Mas da maneira mais dialogal que já vi. Conversava, humildemente, com nossa Senhora, na sala de jantar, em um cantinho da mesa próxima à cadeira onde meu sogro gostava de ler a Folha de São Paulo.

Era a casa de festas de família, e na sala onde os aniversários corriam alegremente. Uma vez todos resolveram dançar na sala, no meio da felicidade e na comemoração de mais um ano de vida do meu filho.

Os meus sogros se foram. Deixaram uma casa na Vila Sônia. Uma casa e no quintal uma mangueira cujos frutos são disputados pelas maritacas. Uma goiabeira de frutos pequenos, o pé de limão e as memórias das festas juninas, do pular a fogueira, da pipoca e do quentão.

E eu vou a São Paulo e cuido da casa da Vila Sônia. Ficou ali o meu cunhado, sozinho e sempre trabalhando. Eu faço o macarrão, o café, o bolo de brigadeiro, asso o pernil... E a música ecoa pela casa. É música que vem do rádio que ficou sobre a geladeira Frigidaire, herança do meu casamento de quase três décadas. Vêm as músicas e, de repente, o anúncio; "Alfa fm".

Ando pela casa, cuido de tudo com um amor desmedido e respeitoso. A cachorra chama para um afago. Ainda procuro a Palmirinha na televisão na hora do almoço. Leio a Folha no mesmo lugar onde o meu sogro se atualizava.

Preparo-me para o circuito cultural. Saio e vou ao Bixiga. Vou à Liberdade, padaria Santa Tereza , MASP, Paulista, Ipiranga, Mooca. Vou com lenço e com documento. E levo guardado nas reentrâncias da alma todo o sentimento da herança mais bendita que pode existir: o valor ao mais velho, o respeito às tradições, o amor à família e à construção da história.

E anoitece mais uma vez. Vem o luar na Vila Sônia. Ficamos mais velhos. Olho pela porta de vidro da sala. Vem o silêncio. As dúvidas.

Mas na manhã seguinte o pão da padaria convida a viver, a igreja de São Benedito abre as portas e o santo escuta as saudades, afagando, suavemente, as nossas almas.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 23/08/2012
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