Tolerância zero

Jurandir levantou-se suado. Dormia mal há algum tempo. E o motivo dos pesadelos e ranger de dentes das madrugadas? As pessoas idiotas que povoavam seu mundo.

Tomou uma chuveirada morna como o humor de seu chefe. Seu Aristides gostava de rir alto para que todos soubessem de seus implantes de porcelana. E sempre que um funcionário chegava atrasado, fazia perguntas idiotas:

- Tá chegando agora?

- Está atrasado?

- Está chegando atrasado porque perdeu a hora?

Depois do cafezinho amargo, chamou o elevador. Encontrou a vizinha da frente, uma sirigaita que fala mais do que a boca:

- Bom dia!

- Bom dia.

- O senhor vai descer?

-...

Ela faz a mesma pergunta todas as manhãs. E o que é pior: ambos moram em uma cobertura. A única alternativa para se chamar um elevador, nesse caso, é descer. Pior do que isso só quando Jurandir encontra a moça na garagem, esperando pelo elevador:

- O senhor vai subir?

Não é a toa que ele tem fama de mal educado no prédio.

Já um pouco atrasado, Jurandir para num posto de combustível para abastecer seu carro. Ele estaciona ao lado da bomba de combustível e estica o braço para fora do carro, com a chave na mão, e pede ao frentista:

- Completa, por favor.

- É pra encher o tanque? – pergunta o desatento.

Jurandir suspira. O dia será longo.

Ele desvia do chefe quando chega ao trabalho. Jurandir é professor. Mas é esperado por uma mãe que deseja lhe falar. Eles se olham por um instante e se reconhecem. Estudaram juntos.

- Jurandir! Há quanto tempo? Você é professor?

- Sim...

- Então você dá aulas aqui?

Todo o entusiasmo vai por água abaixo. Será que todas as pessoas que lhe dirigem a palavra são bestas? Ninguém pensa antes de falar? Ele atende a mulher e a despede. Precisa concentrar-se no trabalho para não enlouquecer.

Começa a corrigir as redações de uma turma. Na primeira, encontra uma frase genial: “Quando eu chego a casa e entro pra dentro já tenho vontade de sair pra fora, porque é uma chatice...”. Decide deixar essa por último. Em outra: “Nina saiu de casa de cabelos molhados. Eu perguntei: - Tomou banho?”. Desiste dessa também. Mas sempre tem a gota d’água: “Eu abri o chocolate e Amanda perguntou se era pra comer...”. Jurandir respirou fundo e jogou os papéis dentro da pasta. O dia não poderia piorar...

Depois do trabalho foi ao supermercado. Encontrou uma amiga:

- Você por aqui? Que surpresa! Veio fazer compras?

Ele já não conseguia responder, senão por monossílabos. E para piorar, a mala emendou a conversa:

- Soube que você se divorciou. Não deu mais certo?

Jurandir largou as compras e foi embora. Rezava para não encontrar mais ninguém que pudesse esgotar ainda mais a sua já gasta tolerância. Pensou em sua vida, em como era infeliz num mundo tão fútil. Resolveu que morrer seria a solução.

Essa ideia nunca lhe parecera tão sensata. Depois de um breve momento de dor, a escuridão e o silêncio total. Sem perguntas idiotas.

Em posse de seu 38, rumou para o terraço. Respirou o ar frio e poluído da noite paulista e meditou por alguns instantes. Não deixaria nada inacabado. Não teve filhos. E sorriu ao pensar no diretor muquirana, que com certeza sofreria para encontrar outro professor.

Deu dois passos no escuro e apontou a arma para a cabeça. Ficou curtindo o silêncio. Esperou demais. Outra pessoa também pensou em curtir a noite no terraço. Ninguém menos que sua vizinha abelhuda. Ela viu a cena do vizinho apontando o revólver para sua cabeça e desatou a gritar:

- Meu Deus, seu Jurandir! Que loucura! O senhor está tentando se matar?

Duas lágrimas rolaram pelo rosto exausto de Jurandir. Ele pensou em todas as respostas que deveria ter dado às perguntas imbecis que ouvira durante o dia:

- “Não, eu não vou descer. Só estou esperando pra ver se o elevador ainda não se mudou”.

- “Não, eu não vou subir, estou só esperando meu apartamento descer para me buscar”.

- “Não, não é pra encher o tanque, é só pra ver se ele está bem”.

- “Não, eu não dou aulas aqui, eu sou veterinário. Você não sabe os animais que aparecem aqui...”.

- “Não vou dar nota zero para essas redações, vou escrever em todas um zurro: Inhooooooó”.

- “Não estou aqui para fazer compras, vim apenas passar o tempo respondendo perguntas absurdas”.

- “Não, me divorciei porque vivíamos muito bem juntos, tão bem que não tinha graça...”.

Mas ele não tinha resposta para a pergunta mais inadequada de todas:

- O senhor está tentando se matar?

- Não! Eu estou sequestrando meu cérebro! Estou exigindo que ele pare de raciocinar e se torne tão insignificante quanto o dos outros!

Jurandir gritou tão alto que assustou a moça ingênua. Um sorriso malicioso surgiu quando ele apontou o revólver para ela. O som de dois tiros perdeu-se na noite. E o luar se tornou bela mortalha para os corpos.