Com os mortos
                            não se brinca

     Esta semana, morreu - de, não sei bem o quê - um cidadão do qual eu não gostava. Coisa estranha! É por demais sabido que gosto de deus e o mundo. Inda mais agora quando me vejo atravessando o meu ocaso, e de bem com a vida.
Pela ausência, agora definitiva, desse cidadão, que teve sua morte fartamente divulgada - leiam-se os obituários do dia -, festejo e me regozijo.
Sua morte não me levará a enaltecê-lo. Seu falecimento não me fará  proteger-lhe a imagem e preservar-lhe a memória. Não assim agiria, nem para praticar o que um amigo meu, muito piedoso, chama de um ato de caridade cristã.
Que lhe seja aplicado, pois, o castigo que bem merece. 
     Se alguma coisa lhe deva favorecer no outro mundo, mitigando sua pena, que sejam as rezas das beatas que por aqui o paparicavam; justificando e escondendo seus erros depois de sonoras Ladainhas.
Jurando algumas, que o Céu o esperava sem precisar passar pelo Purgatório. Pasmem!
     Não raras vezes, o encontrei na minha rua puxando um inocente puldo. Nos seus passinhos miúdos e forçados, a resignada cadelinha denunciava sua avançada idade. Soube por alguém que ela morrera primeiro do que o seu dono.

     Lendo o obituário anunciando a morte desse cidadão, lembrei-me de uma frase do genial Mark Twain encontrada no meu retorno ao seu formidável Dicas úteis para uma vida fútil - um manual para a maldita raça humana. Ele a teria escrito em abril de 1910; pouco antes de sua morte: "Deixe seu cachorro do lado de fora. Entra no céu quem merece. Se fosse por mérito, você ficaria fora e o cachorro entraria."
Torço - que Deus me perdoe -, pelo puldo do de cujus.

     Antes de publicar esta crônica, mostrei-a a uma pessoa que sempre convoco para aprovar, censurar ou rejeitar meus escritos. E sua pergunta, adivinhem qual foi? - "Por que tanta raiva; tanto ódio? O homem já morreu." Me fez lembrar o conhecido brocardo latino que eu aprendera nos meus tempos de seminário: Mors omnia solvit - A morte apaga, dissolve tudo.

     Instado, tive que explicar o porquê de toda a iracundia na qual mergulhara minha crônica; e o que pior, contra uma pessoa morta.
(Ah, os romanos: "Mortuo leone et lepores insultant - Ao leão morto até as lebres insultam.)

     Abrindo um largo sorriso, dei-lhe a explicação pedida. Não fiquem meus leitores surpresos.
O morto, alvo de toda a minha raivosa crônica, nunca existira. Criei-o, apenas, para passear pelo teclado do meu notebook, numa tarde em que me vi sem nada, sem absolutamente nada, para escrever.
O censor, ainda perplexo, repetiu o que todo mundo sabe, ou seja, que "com os mortos não se brinca."
     Mas que mortos? Indaguei-lhe...



      


Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 13/08/2012
Reeditado em 13/08/2012
Código do texto: T3828491
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