DDD - Diário de Derrotas [34]

05h30m

Acordo com meu celular despertando. E, se é o meu celular despertando, é sinal de problema. Rolo pro lado e sou abraçado.

- Não quero ir trabalhar hoje, não.

- Ah, nem eu. Mas levanta, vai.

- Só mais cinco minutinhos!

- Já é cinco e meia.

- Cinco e quarenta eu levanto, juro.

- Levanta logo, caraio!

- Hummpf.

A preguiça de um complementando a do outro. Se dependêssemos da nossa predisposição biológica a não acordar antes de completadas pelo menos dez horas de sono, estaríamos fodidos. Logo, perco a paciência. Precisamos de dinheiro como toda boa putinha do sistema.

Ela sai das cobertas disparando uma seqüência de lamúrias; sai da cama me deixando descoberto. Somente de cuecas e um frio do caralho. Solto um palavrãozinho e rolo pro lado.

- Me acorda quando sair do banho?

- Tá.

Eu normalmente como coisas que fazem soltar o intestino enquanto ela toma banho; quando ela sai do banheiro, eu entro, dou uma aliviada básica nas tripas e me enfio no chuveiro. Depois que saio do banho, me despeço dela na porta - invariavelmente às seis da manhã - e volto pra cama e durmo mais duas horas. Ela entra às oito. Eu, às nove. Ambos trabalhamos bem longe de casa.

Ajeito o pequeno no travesseiro dele, cubro-o nas pernas; rolo pro lado e durmo.

Luz acesa. Passos pra lá e pra cá no quarto.

- Caralho, tô atrasada!

- Que horas são?

- Seis e meia.

- Porra. Parece que só tirei um cochilo.

- Tava roncando feito um porco aí.

- Ainda tô roncando?

- Aham.

- Que buceta!

- Me leva lá na porta?

- Ah, tá frio. To de cueca.

- Vai assim mesmo. Rapidinho.

Barulho de passos no corredor.

- Seu pai vai tomar banho agora?

- Acho que não. Tá muito cedo pro horário dele. Acho que só vai mijar.

- Bom - ponderei - de qualquer maneira, não vai rolar de te levar na porta não, amor.

- Aff, preguiçoso. Tchau!

- Péra, dá beijo.

- Tô atrasada!

- Dá abraço!

- Tô atrasada!

- Tá, porra, vai embora!

- Oun! Dá um abraço aqui vai.

- Humpf.

- Tchau!

- Tchau!

Ela sai e eu me espicho na cama. Coloco o celular pra despertar dali quinze minutos. Estou preocupado: sinto que tenho bastante merda no intestino, mas que não conseguirei botá-la pra fora antes de sair pra trabalhar.

Adormeço e, pra variar, tenho sonhos relacionados a aviões caindo. Duzentas toneladas caindo a trezentos por hora de bico no meio da Avenida Paulista.

06h47m

Celular despertando de novo. Cogito não tomar banho e ficar na cama até a hora de sair de casa. Acabo levantando. Tomo um copo de leite e como umas rosquinhas olhando pro relógio. Com pressa. Porque quanto menos tempo eu levar comendo e tomando banho, mais tempo sobra pra dormir.

07h05m

Estou na cama novamente, porém devidamente banhado. Tenho quarenta minutos pra dormir e isso, nesses dias terríveis e modorrentos, é quase a mesma coisa que ter um pote de ouro. Ajeito o despertador e leio uma mensagem dela falando que tá atrasada demais e que voltará pra casa pra dormir e depois ir ao médico inventar alguma dor de garganta. Respondo com um "KKKKKKKKKKKKK" e capoto.

07h45m

De novo. O pior é que agora nem tem jeito: é se trocar correndo. Coloco a calça, jogo talco nas meias e nos tênis. Passo desodorante de novo e coloco a camisa. Novamente, cubro o pequeno, que dorme pesado. Jogo a roupa suja mochila e saio do quarto na ponta dos pés.

O sogro, parado na porta do quarto dele, coça a cabeça e me olha de uma maneira engraçada. Tipo, de quem acordou na hora que já deveria estar a meio caminho do trabalho e está pouco se lixando pra isso. Sei como é.

Escovo os dentes ao mesmo tempo em que vou passando a mão esquerda molhada no cabelo. Cuspo um pouco de sangue, graças às cerdas da nova escova, que se assemelha àquelas de limpar peças automotivas. Depois, enfio o dedo na goela. Depois, passo creme no cabelo. Só Deus pode me julgar por tanto. Olho o relógio: oito horas.

08h15m

A plataforma está cheia demais para o horário, e isso significa que os trens estão demorando a passar e/ou com lentidão. Minha ambição no momento é conseguir uma porta do lado esquerdo - o embarque/desembarque dessa linha é feito todo pelas portas do lado direito - pra sentar e dormir. O trem vem, e é um dos antigos, com os bancos laterais e com passagem livre entre os vagões. É meu preferido pra dormir. Ele vai diminuindo a marcha. Calculo que a porta ficará bem à minha frente quando ele parar - e calculo certo. Assim que ele para, fixo os olhos no lugar que pretendo ir: a porta do outro lado, com um espaço pra sentar, visto que já tinha uma moça sentada numa das pontas. A porta abre e entro ao mesmo tempo em que um rapaz que parecia ter tido a mesma idéia que eu. Porém fui mais rápido e encostei na porta. Ele ficou me olhando feio. Com cara de quem me daria um soco se pudesse. Entendo ele. Mantive os olhos nos olhos até que um de nós desviasse. Brigar por um canto imundo no linóleo de um trem jurássico que rasga a merda da Zona Leste todinha pra chegar no inferno do Brás... Que decadência.

Assim que o trem se põe em marcha novamente, eu me sento, ligo o MP3 player, arrimo os cotovelos nos joelhos e fico com a cabeça entre as pernas. Capoto.

Acordo sem ter certeza de ter dormido, mas sentindo os vincos das costuras da blusa na testa. Um molhado de saliva na calça. Percebo as pessoas se ajeitando. Tiro os fones do ouvido: Estação Tatuapé. É onde devo descer. Levanto enquanto o celular cai no chão e voa bateria prum lado, chip pro outro; não sei que horas são. Monto a porra toda e saio arrastando os pés atrás das dúzias e dúzias de pessoas felizes.

09h05m

Descobri a hora agora, com essa gorda que está ao meu lado ouvindo música alta no celular. Com fones, mas não deixa de estar alta. Tinha que ser gorda. Começo a refletir sobre a minha implicância com barulho quando me pego imaginando cutucando a pessoa e pedindo educada e encarecidamente que ela abaixe o volume do aparelho sonoro, mesmo ela estando com fones. Esse é o trem que vai até a Luz. Eu sento no chão e durmo até lá.

09h22m

Esse é o Metrô da Linha Amarela, que vai até a Estação Paulista. Eu consigo um lugar sentado e durmo até a hora de descer.

09h31m

Esse é o túnel que liga as Linhas Amarela e Verde, onde todos os seres humanos se arrastam e se esbarram e se odeiam numa caminhada que deve somar lá seu quase um quilômetro entre uma linha e outra. Caso eu estivesse acompanhado, teria levado pelo menos vinte beliscões, de tanta mulher gostosa que está passando aqui. Também teria distribuído uns bons tapas, porque a rapaziada que passa por aqui costuma ser bem agraciada também... Que vida.

09h41m

O dia está realmente bonito. Lindo, eu diria. ‎"O que faz um dia ser lindo além de ele ser lindo?", diria Fernando Pessoa. As mulheres estão perfumadas no tom certo. No tom?

09h50m

Caindo de fome. Ligo o computador e só aí, então, que me dou conta de que devo estar há vinte minutos acordado, uma vez que só não dormi, óbvio, enquanto fazia as baldeações entre as linhas todas. Minha cara no espelho não aparenta ser a desgraça que eu previa, apesar do olho inchado, do cabelo desgrenhado e da barba há quinze dias sem uma ajeitadinha.

Começo a trabalhar.

10h30m

Noto que um cheiro ruim paira ao meu redor. Olho as solas do tênis e lá estão, um belo pedaço de merda seca incrustado em cada um dos pés. Caralho.

- Gente, vou ali no estacionamento rapidinho.

- Fazer.

- Eu pisei numa merda seca e ela ficou colada nos meus tênis. O cheiro tá terrível. Vou lá tirar.

- Que horror!

Desço no elevador. Fedendo.

11h20m

Hoje parece ser um dia bom... Terminei tudo o que tinha pra fazer. É nessa hora que começo a ser importunado com paranóias de que estão me vigiando e julgando que não faço nada além de ficar na internet o dia inteiro enquanto todos parecem trabalhar como se disso dependesse o funcionamento de seus pulmões. É nessa hora que chegam os aterrorizantes e-mails com convites para almoçar. E eu, com toda a delicadeza de um touro, declino. Não que eu seja esnobe ou as pessoas que me convidam sejam inconvenientes, mas a minha prerrogativa de um bom almoço é usar a boca somente pra mastigar.

13h30m

Desço de elevador com a mulher da limpeza e mais três sacos de lixo.

13h40m

Pouco antes de eu sair, as pessoas que trabalham comigo me convidaram de última hora a comer lanche. Como sempre, neguei. Convidou pra almoçar lanche, acaba o amor. Agora me vejo diante de um prato de arroz, feijão, salada de maionese, cenoura e beterraba raladas, brócolis assado com azeite, beringela ao pesto, purê de mandioquinha, pastéis e bolinhos de queijo e de um suco de beterraba com limão. Ataco o prato. No segundo round tem canelone de rúcula com tomate seco, batata recheada, penne ao sugo, creme de milho e mais pastéizinhos. Mais suco. O terceiro round é com salada de frutas e torta de limão. "Mimimi comer no Mc mimimi". Meu cu com fritas, amigo.

14h15m

Troco algumas palavras com o cara do caixa enquanto vou admirando a caravana de modelos que vai entrando no lugar, procurando pratos, olhando o buffet, se servindo, rindo, fuxicando; erro a senha do cartão. Ao me servir de chá, abro mais do que deveria a torneirinha e, ao invés de fechá-la, abro mais ainda e começa a escorrer chá quente por entre meus dedos; o copinho, transbordando. Aí vou dar uma bicada para deixá-lo mais leve e queimo a língua. Começo a me irritar.

14h28m

Na porta do prédio. Agora as pessoas param pra ver o Entusiasmo de Anakuma. As coisinhas gringas param e ficam maravilhadas, fotografando sem parar. As do sul também. As do nordeste também. A hora passa e eu nem vejo.

14h50m

Organizando as guias que foram pagas. As Gares voltam duas vias, com um comprovante para cada numa só impressão. Tenho que dividí-lo com a régua e grampear em cada uma das vias. Passar régua no meio, certinho. Grampeia um. Grampeia o outro. Olha o nome de quem solicitou atrás e separa. Já com as diligências, vem quatro vias numa só impressão; um comprovante de trinta centímetros. Coloco a régua em cima e separo as quatro vias; grampeio três, que são as vias do advogado; na outra via, na que volta pra mim, escrevo o nome do requerente e o número do processo. Depois que já está tudo separado de acordo com o nome da pessoa, eu separo as primeiras vias das vias do contribuinte. As primeiras ficam com o advogado e as segundas comigo. Isso não muda nunca. É todo dia, no mesmo horário, a mesma coisa.

15h10m

R: SANTO CRISTO!

C: Paaaara de me bolinar com os olhos!

N: KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK!

R: Nossa senhora, que calça é essa?

C: Ô N, fala pra ele parar?

N: KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK!

16h38m

Tá rolando uma obra no andar de cima. Parece que chegou a vez de trocarem o piso; duas marretas batendo sem parar no teto acima de mim. A sorte é que não tenho nada pra fazer. A sorte é que hoje, enfim, não estou com dor de cabeça. Esse dia tá pacato demais pro meu gosto. Para compensar, provavelmente terei um surto psicótico à noite, ao chegar em casa e me deparar com aquela paisagem deplorável de albergue que a complacência e a falta de bom senso alheia criou e continua criando; sim, eu sei, eu sei que vai acontecer algo ruim, porque jamais o seu dia pode caminhar mansamente sem que nada aconteça para descarrilá-lo.

17h25m

Eu estava perdido nos meus pensamentos quando surgiu um envelope pra entregar numa empresa perto do MASP.

18h10m

Voltei agora, completamente atordoado.

18h45m

A hora não passa.

A hora não passa.

A hora não passa.

A hora não passa.

A hora não passa.

A hora não passa.

A hora não passa nunca.

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10/08/2012

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 10/08/2012
Código do texto: T3823885
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