Oito mulheres

Deixarei de discorrer nesta breve resenha a importância que a minha mãe e minha irmã tiveram em toda a minha vida. Afinal de contas, não é preciso dizer a ninguém que mãe é fundamental e irmã é uma bênção.

Tratarei aqui de citar apenas oito mulheres que de uma maneira ou outra participaram de alguns momentos cruciais da minha existência, dando-me atenção, cuidados, conselhos, carinho, afeto, companhia, amizade. Há uma legião de outras, anjos muitas delas, aqui não mencionadas, mas que nem por isso têm sua grandeza diminuída ou abalada nas minhas lembranças e das quais também me recordo com saudade.

 
Mirna

A minha primeira amiguinha, irmãzinha do coração. Dois anos mais velha, assim como o Carlos Alberto, o outro componente do nosso trio da tenra infância. Ambos moravam na rua dos fundos da minha casa. Eu mais amigo dela do que ele. Mas como era amigo dele também, servia de elo entre os dois.

Assim como a vida une, às vezes afasta. Fomos crescendo e nos distanciando um do outro, embora continuássemos a morar no mesmo bairro, nas mesmas casas. Cada um foi tomando seu caminho, sem cruzamentos entre os dois.

Uma menina de quatorze, quinze anos, tem mentalidade mais adiantada – pelo menos naquela época – do que um piá da mesma idade. Como a Mirna estava um par de anos à minha frente, nossas diferenças de comportamento e aspirações, nessa fase, eram ainda mais acentuadas. Ela, no ensino médio e eu, no ginásio (parte do fundamental de hoje). Eu, brincando com bolinhas de gude e jogando bete-ombro com a molecada na rua; a Mirna, largando as bonecas para cultivar sonhos.

Ao saber que ela estava para se casar, fiquei esperando pelo convite, achando que nosso distanciamento tinha sido coisa de momento ou de uma fase da vida. O convite não veio. Acho que fui acidentalmente esquecido e fiquei de fora do casamento. Triste. Por trás da janela eu a vi entrar, vestida de noiva e linda como todas as noivas são, no automóvel que a levaria à igreja.

Jamais esse fato amargou minhas lembranças dela. A Mirna sempre esteve presente no meu coração, por ter sido ao mesmo tempo minha cúmplice e álibi da parte mais saborosa da vida, a infância. Certamente a fração da existência em que somos verdadeiramente felizes, sem termos sequer consciência disso.

 
Zuza

Uma das filhas do Tartaruga, o estofador. Não me lembro de como foi. Mas vi a Zuza descendo a rua da sua casa num final de tarde, voltando do trabalho. Eu correndo, não sei se empinando raia ou andando de patinete, chegando à esquina, sozinho, caí feio. Estendi-me no chão de terra. Ralei-me todo e provavelmente bati a cabeça numa pedra solta.

Acho que perdi a consciência por um instante porque quando dei por mim estava chegando a casa nos braços da Zuza. Nunca esqueci o gesto de carinho e solidariedade. Por isso fiquei com muita pena pelo triste fim que ela se impôs.

Casou-se. Não podendo ter filhos, adotou um bebê. Logo ele morreu. Desconfiavam que ela não soube cuidar, ou negligenciou por causa da bebida.

Entregou-se ainda mais ao vício e tentou o suicídio. Não morreu, mas teve de conviver com as sequelas provocadas pela soda cáustica até o fim dos seus dias, anos mais tarde.

 
Dona Graciula

Dona Ciúla, como era chamada, foi mãe de cinco filhos. Os dois meninos, José Luiz e Sérgio Augusto, meus colegas de escola e depois muito amigos de infância, adolescência, e por mim considerados dessa forma até hoje, embora haja muito tempo que tenhamos perdido o contato. Três lindas e graciosas meninas, Regina Maria, Maria Lúcia e Ana Maria. Todas Marias, por devoção da mãe a Nossa Senhora, com certeza.

Admirava a educação que dona Ciúla transmitia aos filhos e também a fortaleza que era no papel de viga mestra do lar, sem qualquer desabono ao seu Licínio, homem pacato e silencioso. Sem que nunca soubesse, ela educava os seus e a mim também. Quando passava uma ligeira reprimenda no Sérgio, o mais levado, eu registrava e aprendia a lição. Assim, posso dizer sem exagero que ela participou ativa e positivamente da formação do meu caráter e também da minha religiosidade. Ou melhor, da minha fé, que religioso de templos não sou muito, mas minha fé é inabalável.

 
Dona Mercedes

Mãe do meu grande e inesquecível amigo Antonio Strano Vieira, que nos deixou precocemente em 2011, e também da Maria Bernadete e do Júlio Cezar.

Dona Mercedes era mulher de casa cheia. Gostava de gente e a todos tratava com respeito, cortesia e generosidade. Amigos dos filhos eram seus amigos. Exceto eu, que não era amigo. Era seu filho também. Assim que ela me tratava e considerava.

Quando minha mãe faleceu, adotou-me no seu coração. Sentenciou: agora você é meu filho, pode contar comigo para o que precisar. Ganhou um filho de 17 anos.

Uma vez comentei com o Antoninho que eu não gostava de galinha. Acredito que exagerei um pouco ou não me expliquei direito. De fato, as penosas não fazem parte até hoje da minha dieta preferida. Ninguém irá me ver num restaurante pedindo ou me servindo de frango, salvo se não tiver outra coisa. Entretanto, vez ou outra vou àqueles de Santa Felicidade e como frango a passarinho. E para ser justo, confesso que antigamente, nas minhas andanças pelo interior, quando almoçava ou jantava no restaurante do Grande Hotel de Guarapuava, fazia questão de pedir um espaguete com frango grelhado. Não sei exatamente por que motivo, mas aquele macarrão com coxa desossada era imperdível. Nunca pedi galinha em outro lugar.

O curioso é que me criei sem ojeriza ao prato. Todavia, acredito que não me adaptei ao sabor do frango de granja, pois durante muito tempo comia apenas galinha caipira, nascida e criada no galinheiro lá de casa. Às vezes minha mãe abatia uma e a preparava ensopada, servida com polenta. Prato de domingos eventuais. O gosto da carne de galinha de terreiro é bem diferente dos frangos crescidos à custa de hormônios, e eu tinha o privilégio de ficar com as coxas. Não apreciava as outras partes. Peito, sempre detestei.

Um domingo, jantando da casa da dona Mercedes, o Antoninho deu com a língua nos dentes e comentou que eu não gostava de galinha, o prato que estava sendo servido. Para meu constrangimento, a dona Mercedes foi depressa preparar um bife para mim. Daí em diante, sempre que jantava lá e tinha frango, ela me servia um suculento bife, por mais que eu me esforçasse em dizer que não era bem assim e que tudo não passara de um mal entendido do Antoninho a uma expressão que eu havia usado algum dia.. Queria que ela não se preocupasse comigo, mas não tinha jeito.
O meu bife sempre estava reservado.
 
Janete

Belinha, Janete e Sandra. Três irmãs morenas que moravam pertinho da casa da minha irmã.

Tornei-me amigo da Janete pegando com ela o mesmo ônibus, quando eu almoçava na casa da Glacy, todos os dias. Ela era noiva do herdeiro de uma das mais importantes fábricas e lojas de móveis da cidade, na época. Do ponto até a casa dela era um bom pedaço, que vencíamos sempre com agradável e alegre conversa. Muitas vezes ainda voltávamos para o centro da cidade juntos, após o almoço.

A Janete, de certa forma, cuidava de mim. Era observadora e me dava conselhos nas entrelinhas. Foi assim quando uma mulher de trinta, que dividia o mesmo transporte conosco e descia no mesmo ponto, fazia ferver meus hormônios de 19 ou 20 anos, metida num vestido saco branco. Seu corpo bem esculpido e o contorno da calcinha atrevida sob o vestido sem combinação punha-me à beira de um ataque de nervos. Não adiantava a presença do marido. A gostosa me provocava de todas as maneiras, fazendo pose, contorcendo-se no corredor e deitando sobre mim olhares de fogo. Derretia-se toda e me deixava louco. A Janete discretamente me advertiu:

- Você é muito paquerador. Cuidado!

Nem respondi. Entendi o que ela queria dizer. Deixei a mulher do vestido saco para lá. Ela que cuidasse do marido. Ou ele dela, não sei...

Em outra ocasião ela foi explícita e definitiva. Nascido e criado em bairro de imigrantes alemães e também convivendo com alguns descendentes de poloneses e italianos, adquiri desde cedo o costume de usar invariavelmente, no inverno e no verão, uma camiseta por baixo da camisa. Era usual ao povo dessas etnias. Todos usavam. Sem camiseta, sentia-me pelado.

Um dia de muito calor a Janete não aguentou. Lascou na bucha:

- João Carlos, não use camiseta. Um calor desses, não precisa! Além disso, é feio.

Atendi prontamente à ordem. Nunca mais usei camisetas debaixo de camisas. Nem no inverno, sob neve.

 
Tia Zina e Anair

Tia Zina era irmã do meu pai e nossa vizinha de muro. Anair, sua filha adotiva, minha prima do coração.

Depois que minha mãe faleceu, elas prontificaram-se a lavar minhas camisas. Toda segunda-feira eu entregava a elas camisas sujas e as recebia, no dia seguinte, lavadas e passadas com perfeição. Dava até pena de usá-las de novo.

Foi assim durante alguns anos. Não poupavam capricho e acho que nunca as agradeci da forma que mereciam. Ingrato.

 
Lola

Com quase o dobro da minha idade, recebia-me contente na sua alcova de viúva recente. Frequentei bastante a sua casa. Tornou-se minha confidente em certos assuntos.

- Lola, estou apaixonado e ela não me quer - queixei-me uma noite.

Na cama macia e perfumada de brancos lençóis, sussurrou com os lábios no meu ouvido:

- Diga a ela que você é muito gostoso.

- Não posso dizer uma coisa dessas a moça de família, Lola. Além do mais, essa é uma opinião particular sua em razão do nosso perfeito sincronismo carnal.

- Então me dá o telefone ou endereço que eu mesma digo...

- NÃO!!!

Fazia tempo que não a via. Num finalzinho de tarde, fui à casa dela. Morava de aluguel em uma casinha confortável num terreno com várias outras. Um vizinho me avisou.

- A Lola mudou-se. Juntou seus trapos com os de um guarda. Sei onde é, levo você até lá.

Poucos quarteirões depois, chegamos.

- Espere aqui, vou ver se o marido não está em casa.

Fiquei aguardando do outro lado da rua. Após alguns minutos, o homem voltou.

- Hoje não dá. Ele está em casa. Nem pude dizer que você está aqui. Volte outro dia.

Nunca mais voltei. Não seria direito. Apenas fiquei torcendo para que as coisas dessem certo e que ela encontrasse felicidade duradoura junto ao novo companheiro. A Lola, afinal, merecia.


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N. do A. - Na ilustração, Gabrielle et Jean de Pierre-Auguste Renoir (França, 1841-1919).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 07/08/2012
Reeditado em 03/02/2022
Código do texto: T3817816
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