O meu primeiro carro e o último do Guido Viaro

Eu estava economizando para comprar o meu primeiro carro. Todo mês um pouquinho na poupança, com jurinho franciscano e garantia do governo. Todavia, o mercado de capitais estava fervendo. Os índices das bolsas de valores atingiam níveis incríveis e os bancos criavam fundos de investimento para captação de recursos no varejo e aplicações em volume de atacado. Propagandas atrativas de página inteira nas revistas e jornais. Gente se desfazendo de imóveis para comprar ações ou quotas de fundos de investimentos. Uma loucura.

Não resisti. Comecei a pesquisar fundos de alto desempenho e elevado grau de confiabilidade. Uma noite me encantei com a publicidade de um banco americano em uma revista de política e negócios. Achei que tinha chegado a hora de dar uma chance ao meu dinheirinho, para que ele pudesse crescer  robustamente em outro colchão. Chega de mixaria, pensei.

No dia seguinte fui o primeiro cliente da agência do conceituado banco na cidade. O gerente ficou muito feliz com a minha aplicação e demonstração de confiança. Com relação ao mercado, ele nem cabia em si de tanto otimismo. Meu dinheirinho ficara em boas mãos. Lucro certo e garantia da competência dos gringos. Com essa convicção saí do banco, e já me imaginava ao volante de um carango zero poucos meses depois.

Passei a acompanhar mais de perto e com justificado entusiasmo a valorização das quotas. Mas a alegria durou muito pouco e me deixou um trauma profundo. Até hoje penso que eu, com o meu pé frio, provoquei o mais longo ciclo de queda das ações no mercado brasileiro, que durou de maio de 1971 até 1983. Eu fui o culpado. Devia ter deixado meu cacau na poupança.

Com meu capital desvalorizado, comprar um carro novo e a vista ficou para um futuro incerto e não sabido. Não seria conveniente resgatar o dinheiro naquela crise. Ele que ficasse lá no banco americano. Quem sabe um dia...

Enquanto o meu investimento nutria esperanças de recuperação na UTI da casa bancária, comecei a procurar um carro usado, que eu pudesse adquirir dando uma pequena entrada e financiando o saldo em prestações que o meu bolso conseguisse suportar.

Um dia, no meu expediente vespertino no Tribunal de Justiça, alguém me informou que ouvira um advogado oferecendo um fusca ano 1965 com 30 mil quilômetros rodados. Considerando-se a idade do carro, era uma quilometragem baixa. Havia muito para rodar ainda. E o preço cabia nas minhas possibilidades de entrada e financiamento.

Fui procurar o advogado, que ainda estava no prédio, no cartório de uma das varas cíveis. Explicou-me que se tratava do carro do seu pai, recentemente falecido. Estava arrolado em inventário, mas o juiz já havia mandado expedir alvará, para que a venda pudesse ser efetivada. Marquei para ir vê-lo à noite do mesmo dia.

Não entendendo nada de carros, aliás, como até hoje, pedi ao meu primo Ruy Brunetti, que tinha mais experiência, para me acompanhar. Chegamos à casa da Avenida Sete de Setembro e fomos amavelmente recebidos pelo Dr. Constantino, que prontamente nos apresentou a um impecável fusquinha branco na garagem.

O meu primo dirigindo, saímos somente os dois para dar uma volta, deixando o Ford Galaxie dele em garantia. Anda aqui, anda ali, à esquerda, à direita, acelera um pouquinho, freia, puxa um pouquinho mais, essas coisas. Nenhum defeito grave e aparente foi constado. Fechei negócio.

Realizados os trâmites para o financiamento e com o dinheiro na conta do vendedor, fui buscar o fusca. Eu sabia dirigir, mas não tinha habilitação. Por isso levei o meu amigo Antonio Strano Vieira. Com ele no banco do carona, fui mostrar meu novo brinquedinho para a namorada. Logo que o viu, ela tratou de batizá-lo: Herbie, em alusão ao carrinho do filme Se Meu Fusca Falasse, de 1969. Além disso, fez-me pintar as rodas dele de branco, mais tarde. De rodinhas brancas, virou o nosso Herbie, como no filme.

Durante algumas semanas, até concluir a papelada e exames no Departamento de Trânsito, dirigi sem habilitação. Ia todos os dias para o meu trabalho matinal no escritório da Brunetti Discos, estacionava sem problemas em frente ao correio velho e cumprimentava o guarda de plantão com receio de que ele me pedisse os documentos. Felizmente nunca pediu.

O fusquinha estava mesmo em bom estado. Notava-se que era de pouco uso, pelo seu aspecto geral. Do jeito que saíra da fábrica. Nem rádio tinha.

Vi na vitrine da Tarobá, entre outros modelos, um rádio Telespark que muito me agradou. Entrei na loja e o comprei. Com uma autorização da firma, fui à oficina do Panasco & Mingo (ou Mingo & Panasco), para providenciar a instalação.

Fiquei esperando ansioso para ver o meu fusca sonorizado. Finalmente, tudo pronto. Rádio e alto falantes instalados. Só faltava ligar, sintonizar e ouvir. Ouvir?

Nem um sonzinho. Nada. Comprei um rádio mudo. Tanto trabalho para instalar e o rádio nem aí. Eu louco para ouvir uma musiquinha na Ouro Verde, brincar nas ondas curtas e o danado me fazendo um papelão daqueles.

O instalador ficou tão desapontado quanto eu. Mexe aqui, ali. Checa a fiação. As conexões. Não descobre o problema. Chamou o Panasco, ou o Mingo, não me lembro bem.

O patrão examinou o rádio, olhou o carro, perguntou o ano de fabricação e sentenciou: não vai funcionar. O rádio era para um sistema elétrico de doze volts e o do fusca gerava apenas seis. Além disso, não era possível converter o receptor para seis volts. Mandou desinstalar tudo.

Envergonhado com minha inexperiência no assunto e levando o rádio debaixo do braço, voltei à loja para negociar a troca. Não criaram nenhum osbstáculo e me sugeriram uma marca recém-lançada e que permitia a adaptação para seis volts. Um Nissei. Aceitei e corri para a oficina credenciada pela marca, para a instalação. Deu certo.

Depois da epopeia do rádio, e animado com meu fusca sonorizado, foi a vez do estofamento. Apesar do bom estado, resolvi dar uma incrementada no interior do veículo. Levei-o ao Dante Strano e mandei forrar os bancos e as laterais com curvim preto e muita espuma por baixo. Gastei uma fortuna, mas ficou uma beleza. Valorizou o carro. Se o antigo proprietário o visse...

Minha natural euforia de jovem ao conseguir comprar o primeiro carro embaçou-me a compreensão sobre a origem peculiar do veículo e a importância para a sociedade, sobretudo no mundo das artes, do seu primeiro dono. Somente algum tempo depois me dei conta de que eu estava dirigindo o veículo que nos últimos anos servira de transporte para um expoente das artes plásticas. Ninguém menos do que o artista ítalo-curitibano Guido Viaro, grande pintor e  mestre dedicado.

Senti-me bastante orgulhoso e honrado com isso. E lembro que certa feita, ao fazer uma faxina detalhada no simpático fusca, eu encontrei entalada no cinzeiro a guimba de um calibroso charuto. Nunca fumei nem permito que fumem dentro do meu carro, desde o primeiro. De quem seria então o achado? Imediatamente ocorreu-me a inevitável pergunta: seria do Guido?

O Herbie proporcionou-me grandes alegrias na cidade e na estrada, até que em 1975 o vendi a um gaúcho da serra, para comprar outro fusca branco.

Mudar de um fusquinha de 1200 cilindradas para um possante fuscão de 1500, zero quilômetro, foi um enorme avanço. Contudo, despedir-me do meu primeiro carro e o último do Guido Viaro não foi nada prazeroso. Mas, como o comprador era do bairro, vizinho e compadre da minha irmã, ainda o via com bastante frequência. Um dia, porém, o homem vendeu o carrinho a um parente que o levou para Caxias do Sul. Nunca mais o vi, embora durante vários anos ainda recebesse notícias da sua valentia em outras terras.

Hoje não sei se o Herbie continua rodando entre parreirais na Serra Gaúcha ou se já acabou seus dias entre eles, sucumbindo ao tempo. Nem notícias dele eu tive mais.


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N. do A. - Na ilustração, Herbie e o autor, em maio de 1974.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 06/07/2012
Reeditado em 30/05/2023
Código do texto: T3763438
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