Passeio ao Shopping

Cara Distorção Social:

Ontem fizemos uma aula inusitada. Acompanhamos nossos alunos em um passeio cultural a um shopping. Você deve estar rindo com seus dois dentes da frente e questionando: "Passeio cultural a um shopping? Desde quando o currículo de uma escola comporta isso?"

Deixa eu te esclarecer uma coisa: Foi um passeio cultural, sim!

E posso provar.

Quando você atua num ambiente socioeconômico estável e nivelado, talvez o shopping não seja novidade. Mas quando você tem alunos que nunca saíram do círculo social casa-escola, que nunca entraram num ônibus que não fosse o escolar, tudo é novidade. É um mundo barulhento e colorido que eles nunca imaginaram adentrar.

Mas lá vem você coçando sua careca e rebatendo: "E desde quando conhecer um shopping agrega valores, conhecimento?" Como você é teimosa, dona Distorção Social! Vou tentar te explicar.

Sair de sua cidade, respirar outros ares, ouvir os sons de uma cidade grande, ver novas cores. Quanta gente nas ruas, quantos carros levando gente, quantos sons poluindo o ambiente e ao mesmo tempo tocando a mesma sinfonia do progresso mecânico. Verdadeira aula de arte. O cheiro que está no ar é de coisas novas. Os olhos que se cruzam talvez nunca mais se olhem, mas ainda assim causam emoção para a menina sonhadora.

E quanta coisa interessante: as portas do shopping abrem automaticamente. Alguns pensam em brincarem de 'entrar e sair', mas contêm esse impulso por medo de parecerem caipiras. Mal sabem eles que ser um caipira inocente nesse mundo tão malicioso é uma dádiva. E que sufoco no banheiro: torneiras que não abrem, papel-toalha que não solta do rolo... Até descobrirem os sensores, os cérebros imaginam todas as possibilidades. Acabaram de ter uma aula prática de física. E as escadas rolantes? Quantas vezes eles subiram e desceram apenas para aproveitarem o prazer de fazê-lo.

É tanta beleza junta. Lojas lindas, vitrines tentadoras, um convite generoso ao consumismo. E uma aula de economia ao decidirem o que vale a pena comprar com o dinheirinho contado.

E a praça de alimentação? Vai dizer que só tem fast-food, não é? Sinto informar, dona Distorção Social, mas há muito mais do que comida na praça de alimentação. Há escolhas a serem feitas: "Quero um hambúrguer que vi na televisão ou provo comida japonesa e arrisco a não conseguir usar o hashi? Será que vou saber me comportar à mesa num lugar tão chique? E se alguém me viu falar de boca cheia? Vai sobrar dinheiro para um milk shake depois?"

Eles não estão preocupados com as calorias ingeridas. Muitos estão tendo uma experiência única. Sentem-se parte da sociedade pela primeira vez. E querem prolongar ao máximo essa sensação de fazerem parte de um mundo no qual pensam que não vivem.

E enfim, a parte mais esperada do passeio: o cinema. E não é qualquer cinema. É um filme 3D. O dinheiro suado que pagará a meia entrada tem de valer a pena. O filme é elogiado pela crítica, embora eu saiba que você, dona Distorção Social, vai achá-lo nada pedagógico: MIB - Homens de Preto 3.

Mas a maioria desses alunos nunca entraram num cinema. Não conheciam o prazer de fazerem parte de uma forma de arte tão difundida e definidora dos sonhos dos seres humanos. Em posse de seus "óculos mágicos" iniciam o passeio mais empolgante de suas mentes televisivas: Passam a fazerem parte da história dos irmãos Lumière.

Gritam, riem, assustam-se e vivenciam o filme. Os adolescentes que saem da sessão do cinema nunca mais serão os mesmos. Foram transformados pela inclusão.

A volta para casa foi repleta de sensações. Estavam mais empolgados do que na ida. Riam e cantavam mais. Cantavam ao aprendizado que nem sabiam que haviam tido. Aprendizado esse que mostra que a oportunidade de vivenciarem o mundo do qual fazem parte transforma-os em cidadãos. Eles não nascem cidadãos. Tornam-se cidadãos quando participam e interferem na realidade social.

Dona Distorção Social: você deve estar louca da vida e discordando de tudo. Já deve ter roído todas as suas unhas postiças. Sinto informá-la de que é só o começo. Quando um aluno sente-se parte de um grupo, quando descobre sua importância no ciclo da igualdade, você perde mais uma batalha. É menos um alienado em suas mãos espúrias. E de pequenos feitos, como esse passeio cultural, se constroem pontes para que um dia, enfim, você seja eliminada da sociedade.

Agora você deve estar preocupada. Existem educadores capazes de enfrentar seu jugo. Um conselho: tome um calmante. Prepare-se para a guerra. Não iremos desistir.

Seus inimigos de sempre,

Os Professores.