Meu papel social

Saudações.

Saudações preconceituosas de uma professora que não tem preconceitos.

Você está sentado num ponto de ônibus lotado. Um ser excluído da sociedade. Um incômodo aos olhos e narinas dos cidadãos de bem que pagam impostos. Cidadãos esses que cumprem com suas obrigações semanais para com a igreja. Que trabalham honestamente. Que pagam suas contas. Que educam seus filhos. E que por serem autossuficientes não admitem sua existência.

Você tem seus 60 anos e nenhum dente. Os ralos cabelos nunca viram xampu. E apara suas unhas com uma faca. Não toma muitos banhos. E os piolhos aplacam sua solidão. Não tem dívidas porque não tem crédito. Não trabalha porque não tem emprego. Não tem emprego porque não tem profissão. Não tem profissão porque não estudou. E não estudou porque a escola lhe excluiu. A escola lhe excluiu? Talvez você mesmo se excluiu frente às dificuldades. Quantas vezes você desejou a capacidade de seus colegas para aprender as "continhas de mais". Mas como, se o estômago doía e a cabeça pesava? Quantas vezes você imaginou o prazer de degustar o lanche do riquinho da segunda fila? E quantas vezes os dentes tilintavam tanto que você mal conseguia ouvir a professora nos dias gelados do inverno? Mas isso ainda não era nada. Os piores dias eram aqueles em que o pai chegava bêbado e batia na mãe, batia em todo mundo. Ou quando o tio violentava seu corpo. A dor psicológica, a humilhação, o trauma não o deixavam entender o que tanto queriam te ensinar na escola. E te cobravam por você ser revoltado. Mal educado. Animalizado.

Mas todos eles que te cobravam viviam num mundo equilibrado. Num mundo em que era possível comer três vezes por dia. E dormir quentinho. Hoje essas pessoas olham para você nesse ponto de ônibus e balançam a cabeça. E você já não sente mais nada.

Sem a escola, sem a única oportunidade de sua vida, você aceitou o que te impuseram desde o princípio: ser um alienado da sociedade.

Viveu em palácios de lona, tomou banhos em banheiras de lama, dormiu no chão ortopédico. Comeu os restos do restante da sociedade funcional. Bebeu todo o fel da indiferença. E trabalhou na mais difícil das ocupações: Desempregado.

Nada fez por uma sociedade que nada fez por você.

Mas que agora meneia a cabeça quando te vê: "Ah, se tivesse estudado, se tivesse trabalhado quando jovem... vagabundo!"

Você sabe que é um peso para a humanidade. E aguarda resignadamente o fim da jornada. Não culpa ninguém. Não cobra nada. Mas ainda te cobram. Ainda te julgam. Ainda te excluem.

Estou sentada à sua frente imaginando hipocritamente como sou "abençoada" por ter uma vida diferente da sua. E comparando meu casaco de lã quentinho com sua jaqueta de malha fria. Como sou abençoada. E pensando no jantar que logo mais proporcionarei aos meus educados e maravilhosos filhos. Nem sei se você tem família. Mas se tem, não é abençoada como a minha. Afinal eu estudei. Sempre trabalhei. Eu sou uma vencedora. E não tenho preconceito.

O ônibus chega, vou tomá-lo. Mas percebo que você espera por outro carro. Sabe-se lá para onde irá nessa tarde fria.

Antes de embarcar, cumpro com meu papel social: entendo uma nota de dez reais. É meu suborno contra a desigualdade e a indiferença. Daqui a pouco esquecerei todas essas reflexões. E dormirei o sono dos justos.