*VISITAÇÃO AO TEMPO* crônica de saudades

Nem tudo escoa pelo ralo do tempo. Boas lembranças nós as guardamos na memória. Porém, as melhores, se eternizam no coração.

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Querido vilarejo às margens do Piraí, tantos anos sem você! Procuro, nos cantinhos da memória, fragmentos que compunham uma antiga, muito antiga vida, dos dias de outrora. Tão vivas estão, neste instante, vidas já vividas, resgatadas das névoas do passado, sob as quais encontra-se aquela pequena vila operária, de casinhas todas iguais e a fábrica de papel...

Natais! Ah, os Natais de nossas infâncias! Quanta euforia em escalar morros,buscar um galho nos espinhosos pinheiros e trazê-lo morro abaixo. Depois ,altaneiro, lá estava ele espetado num balde com areia, sobre o presépio montado no velho móvel. Em mágica metamorfose, ele agora tornara-se uma árvore, cheia de bolinhas prateadas de papel laminado, com o algodão-neve a completar a decoração. Dedos, por vezes espetados, nem doíam no afã de torná-lo bem bonito. Figuras do presépio com partes quebradas? A solução era simples como as pessoas: esmalte de unha resolvia. Um caco de espelho tornava-se um laguinho onde nadavam patinhos azuis, rodeado de areia e conchinhas.Tudo pronto, quanta euforia! Que bom era ir à Missa do Galo, à meia-noite cantar Noite Feliz! O Menino havia chegado! Voltávamos todos para casa, de mãos dadas com a alegria, pelas ruas escuras, sem assaltos, e todos se confraternizando! Agora, era aguardar, com ansiedade sem fim, o Bom Velhinho. Inutilmente tentávamos não dormir para vê-lo. Mas na manhã seguinte, a pracinha fervilhava de crianças a ostentar seus novos brinquedos. Era um dia mágico, o encantamento do ingênuo mistério da aparição dos presentes...depois, só no próximo ano. Quem nos dera, também, renascer todo ano, com o mesmo jeitinho, o mesmo brilho no olhar!

Ah, pequena querida vila! Quantos tesouros você guardava instigando a infantil paraltice! O proibidíssimo açude era o terror dos pais e a aventura maior dos moleques fujões. Que perigo! Apesar das sovas ou castigos pelas ousadas fugas, estas valiam a pena, assim como se embrenhar pelos morros e matas por horas, enquanto os pais se afligiam.

Bons tempos! Algumas pessoas, por suas peculiaridades, se destacavam. Certa eficiente costureira, carinhosa e muito católica, em vão tentava evitar as travessuras de seu filho caçula, às vezes amarrando-o com uma tira de pano ao pé da máqina de costura para que pudesse pedalar sua incansável "Singer", entre panos e carretéis coloridos. Mas ele sempre conseguia um jeitinho de escapar, enquanto ela ria! Essa era minha afetuosa mãe e o moleque era eu. É do mais fundo de mim que estas lembranças surgem, ou da fumaça do charuto de meu honrado e trabalhador pai, sempre usando suspensórios e companheiro fiel de minha mãe. Da costura e da fábrica vinha o sustento suado e digno dos cinco filhos.

Os vizinhos, a comunidade em geral , eram muito amistosos. Pelas cercas das casas, trocava-se de tudo: ovos, uma xícara de farinha de trigo, açúcar, uma cabeça de alho ou até pequenas fofocas. A amizade pautava as relações, reafirmadas nas cadeiras nas calçadas nos fins de tarde sem televisão. Os apitos da fábrica organizavam as atividades; às onze horas, levas de trabalhadores dirigiam-se a seus lares, onde já encontravam a mesa posta, pois o apito do meio-dia os chamaria de volta. O nostálgico badalar dos sinos era o outro relógio da vila. Seis horas da tarde: hora da Ave Maria nos lares. O anoitecer chegava em paz e estrelado como nunca. O mês de maio trazia a emoção da oferta de flores pela crianças à Mãe de Todo Amor, seguida da angelical coroação da Virgem na igrejinha da Santa das Rosas. A presença de Deus era com fé sentida nas ladainhas, nos incontáveis pontinhos de luz tremulando nas procisssões, no Santíssimo e no fundo de nossas almas...

O carnaval! Os blocos de sujos, os homens travestidos, máscaras de assustar. Muito barulho e algazarra, com a famosa "mulinha" correndo atrás da gente! Nos bailinhos infantis, palhacinhos, bailarinas, índios, odaliscas, havaianas, todos pulando contentes entre confetes e serpentinas e o aroma de lança-perfume no ar. Todo o pulsante universo estava ali!

Há muito o que lembrar. Ainda hoje sinto seu cheiro de mato, de mangas e goiabas, de chuva... Muito doce era ali viver, como doces eram as canas que chupávamos. Quem diria que tanta vida ali existiu! Por onde andam o leiteiro, o verdureiro, o farmacêutico, a carrocinha de lixo puxada pela burrinha Estrela, o pega-pega e as cirandas da praça, a escolinha com as bravas professoras, as meninas com tranças, os namoros de portão? Onde as mocinhas mais assanhadas , com seus namoros modernos demais para a época? Os namorados há muito que abandonaram a praça, o mesmo acontecendo com a bandinha, que silenciou as serenatas no hoje inútil coreto.

O tempo correu como as pernas das crianças que corriam livres pelas ruas e jardins. A vila já se despediu, desceu pelo ralo do tempo, porém deixou seus rastros em todos que lá viveram. Havemos, pois, que acariciar estas memórias a nos acenar. Acenemos também com o coração, em sua alegre ou dolorosa insistência em jamais esquecer...

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N.A. Nasci em Barra do Piraí, uma cidade de porte médio, situada no interior, ao sul do estado do Rio de Janeiro, pois na pequena vila operária onde meus pais residiam - Santanésia - não havia hospital. Lá, na pequena Santanésia, vivi intensamente minha feliz infância e parte da adolescência.

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