O de Sempre. Como Sempre. Para Sempre

Olha as teclas, esperando algum milagre. Esperando o manto de silêncio que o protegerá das recorrentes prosopopéias entediantes das mulheres com quem trabalha. Sente saudades das mulheres do emprego anterior. Não pela facilidade com que elas iam para a cama com ele, mas sim por causa da ausência do clichê feminil casamento-namorado-sapatinho. Sente saudades das risadas, sobretudo. Dos abraços, das divisões de comida, das armações, das armadilhas, das pilantragens pra burlar o sistema fascistóide-imbecilóide da empresa. Sente saudades de não ter que passar o dia com fones socados nos ouvidos. Sente saudades de não querer se enfiar numa caverna munido de uma metralhadora pra afugentar essas porras de sua vida.

Ele sente essa dor que não tem nome, que não tem foco, que não é física. Ele sente essa dor de andar na corda bamba do destino, com encrencas e chateações seja para qual lado cair. Sente essa dor que nem é dor. É mais um aperto no coração. É uma retorcida num cérebro úmido e sujo, que resultam em gotas salinizadas de uma tonelada que pendem em seus olhos.

Ele olha o espelho. Não se reconhece. Acha-se belo. Compreende o desejo de Shannon McFarland ao ter o maxilar destituído do rosto. Nem essas suas olheiras escuras, fundas; nem o rosto magro, chupado, sulcado; nem a pele brilhante de óleo e a barba falha por fazer fazem com que essa imagem mística e bela que contempla seja alterada.

Há quanto tempo deixou de ser o mesmo? O mesmo mesmo de ontem? O mesmo mesmo mesmo de anteonteontem?

Dá um murro na mesa sem se dar conta.

Extrator de grampos, carimbeira, canetas, chaves, grampeador, corretivos, celular, régua e calculadora pulam.

Dá cem por cento do que tem e é e pode pelo que pretende ser.

Os louros de cinco por cento de tudo como retorno.

Mais os descontos que são de praxe.

A vida - o cotidiano - como um holerite impresso em mimeógrafo.

Sem o cheirinho gostoso de álcool, mas com a predominância do cheirinho de chorume.

O telefone toca. Outro problema. Outra mendicância. Outra urgência, fruto de predecessoras sucessões de atitudes asnáticas.

- Pronto?

Ele diz, pronto para o que der e vier no âmbito laboral, quando na vida está sempre se reciclando, sempre regredindo, sempre evoluindo, sempre retrocedendo; sempre dentro da forma, sendo moldado de acordo com as variantes dos ponteiros e de suas lides internas; de suas incongruências, de seus paradoxos, de suas momices e puerilidades e unilateralidades.

- Tudo bem!

Diz, afirma, com tudo bem para os outros, prostrado diante de outro problema que não é seu a resolver, enquanto seus problemas se esfarelam feito tocos de cocôs secos de cachorro, estorricados ao sol, abandonados à sarjeta, rumando à bancarrota.

Levanta, fecha a janela, bloqueia o computador e, com o estômago revirado, vai almoçar naquele restaurante chinês que fede a banheiro de rodoviária.

27/03/2012 - 13h00m

The Killers - Smile Like You Mean It

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 27/03/2012
Reeditado em 27/03/2012
Código do texto: T3578873
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