Canção do amor demais.

Uma pessoa pode ser confundida com a doçura da melodia. Compassada, firme, proposital. Ou mesmo passar pela suavidade do canto do sabiá. Pode ser uma música presente, paciente, que marca almas várias sabendo que o tempo vai passar, mas o amor –esse não tem como passar – esse é perene e fecundo.

Uma pessoa com a alma encharcada de companheirismo pode se afinar com as coisas do tempo, fazer parceria com a brisa, guardar o silêncio da aurora e encantar uma criança com o inesperado arco-íris a se exibir num final de tarde.

Uma pessoa pode ser especialíssima e amada até por pessoas teoricamente distantes: o motorista de taxi, a japonesa vendedora de pastel na feira, o padeiro da esquina, o marceneiro para algum eventual reparo.

Essa pessoa é a tia Norma, minha madrinha duas vezes. Como disse várias vezes, a melhor madrinha do mundo.

Eu tive o privilégio – santo privilégio – de conviver com essa pessoa, misto de realismo com histórias fantásticas das ilusões dos grandes e tórridos amores. Uma mulher com olhar interessado e interessante sobre as pessoas à sua volta e nas suas idas e vindas. Olhar que brilhava intensamente quando percebia algum progresso na vida dos dois filhos e das dezenas de afilhados. Porque a tia Norma era intensa. Uma mulher inteiramente presente – mas ela era o presente da vida, a surpresa do cotidiano, a leveza para os momentos delicados.

Sempre nos acompanhou. Será que a tia Norma era uma personificação de algum anjo da guarda? Acredito que sim. Foi ela que me sorriu quando, numa tarde de domingo, se despedia por ocasião de uma visita à nossa casa quando o meu pai estava absurdamente doente. Ela me beijou e me segurou um pouco no braço para que eu olhasse para ela. Então me sorriu. Esse sorriso se traduziu em esperança num dos momentos mais confusos e dolorosos da minha infância.

A tia Norma lia e compreendia a sua leitura profundamente, sempre à procura do humano e sempre chamou os outros, mesmo desconhecidos, de “filho” ou “filha”.

No ônibus, aproveitava e ia conversando com o motorista. Alias, com o cobrador e os demais passageiros também. E levava junto, pendurado no braço, um pacote de balas e fazia a distribuição igualmente. Sabia se o motorista era corintiano ou palmeirense e sabia cantar os respectivos hinos e fazer os comentários dos últimos jogos.

O seu filho caçula virou veterinário. Lá ia a tia Norma ajudar a procurar aranhas. Numa determinada disciplina, o filho teve que levar para casa uma gaiola com uma ratazana prenha para esperar que os rebentos viessem ver a luz do sol e fizesse suas conclusões cientificas. Os ratinhos nasceram e ela rapidamente deu nome a todos eles: toda a escalação do Corinthians se fez presente ali e ela os alimentava, pela parte de baixo da gaiola. Dava bolo pros bichinhos: “come, filho, come que é bom”...

E como a tia Norma sabia fazer comida... e distribuía os pedaços para as visitas com tanta gentileza e graça que as pessoas iam se convidando a ficar perto dela.

Num domingo, meu marido, meu filho eu fizemos a visita e ela não se lembrava do dia do aniversário do meu menino e fez a pergunta. Eu respondi com tranqüilidade: ” o aniversário do Vinícius é hoje”. Ela se chateou por não estar preparada, por não ter feito um bolo, mas rapidamente tomou suas providências: pegou uma vela, dessas grandes que a gente usa quando falta luz, colocou sobre a gelatina colorida e todos cantamos parabéns.

Numa das vezes que o Guga, o tenista, esteve afastado pelas lesões no cotovelo, ela não teve sossego enquanto não falasse com alguém da família para recomendar uma pomada. Telefonou de São Paulo para cá – Florianópolis – para que o meu irmão descobrisse o número de telefone do jovem jogador. Ela se preocupava verdadeiramente.

Tanto se preocupava que, numa tarde de calor abrasivo, ofereceu um refresco para os funcionários da Telefônica, pendurados no poste da esquina da sua casa. Saiu na sacada e se manifestou decisivamente : ”ei, vocês querem um Tang?” Na aceitação, ela pegou uma jarra com bastante gelo, colocou o pozinho sabor laranja e os seis copos. Não sobrou uma gotinha.

E sempre gostava de presentear. Dela eu ganhei de tudo: além da valiosíssima alegria de viver, algum entendimento sobre a aventura da vida . Ganhei amor, dedicação, beijos e abraços. Ganhei conselhos junto com brigadeiros. Estímulo pelo estudo e pelo trabalho com bolo de abacaxi. Interesse pela minha vida com coca gelada. Mas ganhei muitos livros, perfumes, todo o chá de cozinha para o meu casamento, o fogão, mais conselhos. Ganhei urso de pelúcia, jóias e afeto.

Só há pouco eu soube que ela jamais teve uma boneca e que o seu sonho íntimo, tão pessoal, era esse. Apenas esse. Como que uma mulher passou a vida se entregando ao amor demais, distribuindo presentes e nunca teve direito a só isso?

No natal seguinte levei-lhe uma boneca, uma alemãzinha muito loirinha, toda arrumada. Entreguei o pacotinho e fotografei a minha tia. Percebendo que era uma boneca, chorou enquanto desembrulhava o presente. Aos 80 anos ela ganhou a sua boneca! Eu chorei também. Eu, na minha pequenez, na minha finitude, estava ajudando realizar um sonho de uma mulher de uma grandeza indizível, inenarrável . A tia Norma era um tênue reflexo da bondade que vem de Deus, meio disfarçado, meio barulhento, um reflexo do divino que gostava das sonoras gargalhadas.

Mas no dia 22 de dezembro a tia Norma teve que partir.

Acho que Deus pensou: “é hora do Natal, os anjos e santos também merecem alegria e um bom banquete. Vou chamar a Norminha para organizar a festa”. Deus deve ter pensado em recompensar os seus auxiliares porque, afinal, a humanidade tem dado muito trabalho: assassinatos, tráfico, mentiras, roubos, traições, individualismo exagerado... “Não”, Deus pensou, “os meus auxiliares precisam de um refresco. Só a Norminha prá dar um jeito nisso”.

E ela – certamente – perguntou se Nossa Senhora gostava de frango assado, aquela receita da Palmirinha. Prá São Francisco, deve ter feito o seu docinho de nozes. São Judas Tadeu deve ter se arregalado com o bolo de abacaxi. Jesus deve ter pego um bom naco de bolo peteleco.

“Tá bom o bolo, filho? Come, que é bom. A minha afilhada também gostava”.

Com certeza a Norminha foi recebida no céu com aplausos, os anjos enfileirados sorrindo e com as munhecas doendo de tanto aplaudir.

Seja feliz, Norminha, agrade o céu e mande notícias através de outro anjo, porque a senhora foi o anjo de carne que aconteceu na minha história. Anjo de carne, bondade, sorriso e disponibilidade.

E eu fui abraçar o meu tio depois de tudo. Um homem arrasado! Saí dali chorando, desci a avenida Brigadeiro Luiz Antônio, olhei para o bairro italiano do Bixiga e não entrei, pela primeira vez. Continuei caminhando até o centro, olhei tristemente para a rua Adoniran Barbosa. Dei dois passos apenas nessa rua, arranquei um pequeno galho de uma planta e trouxe para minha casa. Plantei. Herança do Adoniran ... e do dia que tive a certeza de que a Norminha partiu. Viva em paz, melhor madrinha do mundo.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 31/01/2012
Reeditado em 01/03/2012
Código do texto: T3473333