Do dia em que meu pai chorou
 
Meu irmão Álvaro nasceu quase doze anos antes que eu aportasse aqui neste mundo. Mais pela esperteza e inteligência e menos por ser uma criança doentia, era o xodó da família. Certamente por influência explícita do nosso avô paterno, só falava alemão.
 
Toda manhã, o opa Guilherme costumava visitar o tio Adolpho no armazém de secos e molhados que ele tinha na mesma rua da nossa casa, uns quinhentos metros abaixo, e levava o Álvaro a tiracolo. Papeando na língua de Goethe, os dois desciam a então Avenida Pilarzinho contentes. Quando o pequeno dormia demais, o avô ia sem ele. Ao acordar, reclamava da malvadeza. Em alemão, claro.
 
A saúde precária não permitiu que ele avançasse nos anos. Foi chamado muito cedo.
 
No verão de 1939/40, meu pai vivia sua pior crise financeira. O engenheiro Calvi de Souza Tavaves desativou sua carpintaria e, reconhecendo as qualidades do antigo empregado, presenteou-o com todo o maquinário para ele montar sua própria fábrica de portas e janelas. Mesmo com parcos recursos e temporariamente sem fonte de renda, não dava para desperdiçar a oportunidade. Por ter dificuldades com a escrita e para fazer contas no papel, arrumou um sócio com um pouco mais de escola.
 
No terreno do meu avô, ao lado da casa, os dois e mais alguns camaradas puseram-se a construir um barracão de madeira. Quando a armação já estava pronta, um forte temporal colocou tudo abaixo. Tiveram de recomeçar desde os pilares.
 
Os amigos e conhecidos, ao passarem na rua e comprovarem o estrago, em alusão ao sucesso cinematográfico da época zombavam impiedosamente em tom de brincadeira:
 
- Ernesto: e o vento levou...
 
Em fevereiro, nenhum tostão no bolso, o barracão atrasado, sem perspectiva de rendimentos em curto prazo e com as dívidas se acumulando, meu pai sofreu um golpe muito maior do que o vendaval que derrubou o barracão em construção. Com absoluta certeza, o maior em toda a sua vida e dele nunca se esqueceu. Foi à lona: o coraçãozinho do Álvaro parou de bater na sexta-feira depois do carnaval.
 
Não mais o despertar alegre do alemãozinho. Não mais os passeios com o opa. Não mais tagarelar em alemão. Não mais a festa do gato ronronando em torno das perninhas frágeis. Aos dois anos e meio, o Álvaro se juntou às estrelinhas do céu.
 
Necessário providenciar o sepultamento. Terreno no cemitério, o caixãozinho branco.
 
Desesperado e sem recursos, meu pai foi pedir empréstimo ao mais velho dos irmãos, no armazém. Ou porque de fato não tinha, ou por temer pelo tempo que teria de esperar para recuperar o dinheiro, o tio Adolpho negou-lhe auxílio. Doeu demais saber que o tio bem de vida não podia ajudar no enterro do sobrinho que o visitava todo dia.
 
Carregando a sua dor, o pai ferido foi então procurar o cunhado Martinho Erthal, marido da sua irmã Bronilda, a tia Frida.
 
O tio Martim, como o chamávamos, era pedreiro e construía túmulos e capelas no Cemitério Municipal. Recorrendo às suas economias, prontamente adiantou o suficiente para que o meu irmão tivesse um enterro digno, ali mesmo no Municipal, pertinho de casa.
 
Seguiram-se dias de muita tristeza e dor intensificadas pela angústia do gato, que rondava o berço vazio e miava sem parar. Sentia falta do companheiro, o pobrezinho. Desmontado o berço, ainda insistia no quarto, chamando e procurando aqui e ali, na esperança de que o alemãozinho reaparecesse de repente e o chamasse de mitze outra vez.
 
Para o bem de todos e do próprio animal, a família achou melhor se desfazer do gato. Meu pai o deu a um carroceiro que o levou para longe. Semanas depois, o homem contou que um vizinho o matara, porque ele atacava os passarinhos aprisionados nas gaiolas, dando vazão ao seu instinto felino. Sacrifício em vão. Logo ficou constatado que não era ele o autor da crueldade, mas outro bichano da vizinhança.
 
Não sei qual desses dois crimes o maior. Privar os pássaros da liberdade ou tirar a vida de um bicho inocente. Com certeza, no pensamento rude e atrasado do malvado vizinho do carroceiro, o único criminoso da história era o gato.
 
À dor da perda do meu irmão, somou-se o remorso pelo triste fim imposto ao seu bichinho de estimação. O que o consenso indicara como remédio para abrandar o sofrimento da alma, transformou-se no desastre que aprofundou ainda mais a ferida que teimava em não cicatrizar.
 
Nasci nove anos depois. Durante muito tempo pensei que havia chegado de supetão, sem planejamento. Portanto, um caso fortuito. Só bem mais tarde, já adulto, fiquei sabendo que estava enganado. Sou fruto da insistência da minha irmã, que queria um irmãozinho, e da paciência da minha mãe em se submeter a longo tratamento, com os escassos conhecimentos da medicina da época. E também da competência do Prof. Dr. João Vieira de Alencar, clínico, cirurgião geral e médico de senhoras, como se dizia então.
 
Tive duas mães. A que me gerou e me deu à luz, e a minha irmã Glacy, quatorze anos mais velha. Assim, fui quase um filho único. Cheio de cuidados. O trauma da perda do Álvaro tinha deixado marcas profundas, ainda presentes naquela casa.
 
Filho ingrato, preguei-lhes dois sustos. O primeiro, ao nascer com uma inexplicável deformidade na cabeça. Altura de uma bola de tênis cortada ao meio, diâmetro correspondente a duas, mais ou menos. Quando recebia visita, minha mãe disfarçava o defeito com algodão sob a touca, de maneira que a cabeça parecesse redondinha e normal. Na época, não existiam tomografia, ressonância magnética, essas coisas. Os médicos, com pouco conhecimento e de posse de uma simples radiografia, decidiram me operar para ver o que era aquilo. Se desse para extirpar, assim o fariam. Caso contrário, fechariam a incisão e pronto. O que não tem solução, solucionado está. Eu que ficasse com a minha cabeça de Frankenstein.
 
O pavor tomou conta da família novamente. Operação na cabeça? Alguém indicou uma senhora espírita, médium. Com a cirurgia marcada, minhas mães me levaram até ela. Foi o meu primeiro contato com o espiritismo, embora inconscientemente, de muitos que se sucederam ao longo da minha vida.
 
Dona Josefa - ou quem usava seu corpo como aparelho para se comunicar com os daqui, não sei - disse que não era necessário operar. Em poucos dias a bola desapareceria. E desapareceu. Sem remédio, nem intervenção. Os médicos não entenderam.
 
Mais tarde, mas ainda bebê de colo, fui acometido de uma grave gastroenterite. Remedinho daqui, remedinho dali, e só piorava. Minhas mães embarcaram comigo num carro de praça e o fizeram correr para o Dr. Dante Romanó.
 
Encontraram-no na varanda de casa, descansando após o almoço. Cheguei quase desfalecido.
 
Médico experiente, e dos bons, sem demora aplicou-me uma injeção. Passou uma receita e mandou que me levassem e rezassem. O quadro era muito grave. Fosse hoje, iria para a UTI.
 
Na reconsulta, o Dr. Romanó, em resposta ao agradecimento das minhas mães, disse:
 
- Não fui eu que salvei o seu filho. Foi Deus. Agradeçam a Ele.
 
Na despedida, deu-me um coelho de pano de lembrança, que guardei por muitos anos. Algumas vezes, passando na frente da casa do bondoso médico, perto da rodoviária velha, minha mãe relembrava o episódio e indicava a ampla varanda.
 
- Ele estava bem ali, quando chegamos.
 
Adulto, e o Dr. Dante já falecido, o acaso me colocou diante de um dos seus filhos. Contei a ele:
 
- Estamos aqui conversando porque seu pai me salvou a vida. Mas disse que foi Deus, não ele. Sou muito grato aos dois.
 
Toda semana minha mãe colhia flores do jardim e ia enfeitar o jazigo do Álvaro. Muitas vezes eu a acompanhava. Cabia a mim buscar água na torneira para colocar nos vasos. Era uma sepultura simples, coberta por uma gramínea alta, verde escura, que dava em touceiras. Um oásis no meio dos túmulos de alvenaria e pedra. Com as flores de época que a minha mãe levava e com o jeito especial que ela tinha para arranjá-las, ficava uma beleza. Voltávamos para casa felizes.
 
Na semana de Finados eu pintava de azul a cruz de madeira e renovava o letreiro da placa em forma de coração. Reescrevia o nome do meu irmãozinho, as datas de nascimento e morte.
 
Somente há bem pouco tempo minha irmã me contou a respeito do socorro que o tio Martim prestou ao meu pai, para o sepultamento do Álvaro. Depois, sozinho e refletindo sobre isso, senti a dor do meu pai, no desespero de não ter dinheiro para enterrar o corpinho do filho morto. Não pude evitar as lágrimas silenciosas e teimosas a me molhar o rosto. E só então entendi porque o tio Martim foi a pessoa a quem o meu pai mais respeitou e ouviu durante toda a sua existência.
 
Da mesma forma que o meu pai, eu também sentia pelo tio Martim alguma coisa entre respeito e gratidão. Embora não conhecesse a história enquanto ambos estavam entre nós, tinha por ele uma grande admiração, como se a mim ele tivesse um dia prestado enorme favor. Ou teria mesmo sido assim e eu desconhecia?
 
Será que não fora para o meu jazigo, tão singelo e ao mesmo tempo tão bonito com as flores da minha mãe, e que tanto me agradava, que o tio Martin teria emprestado o dinheiro ao meu pai? Não seria minha a cruz de madeira, feita pelo meu pai, com a placa em forma de coração, e que eu pintava de azul todo ano? Não seria eu a visitar alegre o tio Adolpho nas manhãs ensolaradas, na companhia do opa? Não seria eu a me comunicar em alemão? E o gato imolado, não seria o meu?
 
Poderia eu, então, ser o Álvaro reencarnado, nove anos depois, para continuar sua missão neste plano?
 
Acho que não. Eu nem falo alemão... 

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N. do A. – Na ilustração, Arranjo de Arthur Nísio (Curitiba - PR, 1906-1974).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 27/01/2012
Reeditado em 15/06/2021
Código do texto: T3464741
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