DDD - Diário de Derrotas [19]

00h12m

Já tem mais de uma hora que estou tentando dormir e não consigo.

Quando consigo pegar no sono, acordo com alguma risada alta.

Ou com uns três ou quatro palitinhos do volume da televisão aumentando.

Está passando o Programa do Silvio Santos.

E está tocando um pancadão violento nesse programa.

E as pessoas aqui de casa, que passaram o dia fora e não têm hora pra acordar amanhã, estão gostando.

E rindo.

Eu conto até dez mil.

E durmo.

06h45m

Acordei com aquela recorrente disposição de rolar pro lado e morrer.

07h15m

Só consegui sair da cama agora, com o mais azedo dos bodes.

08h10m

O Toco - que é um cachorro baixinho e barbudinho e folgadinho - me ama. Os donos dele, que são os donos dessa mecânica no final da minha rua, deixam ele solto pela manhã, enquanto tomam café na padaria da esquina. O problema do amor do Toco por mim é a maneira que ele tem de demonstrá-lo através de latidos e tentativas de morder minha canela até que eu chegue na esquina com ele no meu encalço e ele seja escurraçado por seus donos.

Aí ele sai andando de volta, rosnando, dando umas olhadas como quem diz: amanhã cê tá fodido.

08h12m

O farol está quebrado.

Acabei de perder a lotação por causa disso.

Tudo bem eu já estar atrasado, mas não queria exagerar.

Caralho.

13h47m

Cheguei aqui no Aspargus caindo de fome e me refestelei com arroz, feijão, batatinhas assadas, canelone de espinafre com ricota, quiche de palmito, strogonoff vegetariano, kibezinhos, brócolis, beterraba e cenoura raladas e uns pasteizinhos de queijo. Queria comer mais, mas essa mistura deu uns revertérios e agora fico aqui sambando na cadeira, puto pra cacete.

13h58m

Comi mais um pouco de batatinhas assadas, cortadas em cubinhos, com strogonoff e o tal canelone. Estou chateado... Os dois últimos pedaços de abacaxi que eu ia pegar foram fisgados por uma coisinha branquinha de ombros de fora.

Paciência.

Encho de chá de cravo um copo dos grandes e saio na Paulista de Meu Deus.

Doido pra jogar esse chá fervente na cara de alguém, só pra ver o que acontece.

14h30m

Entrei no banheiro pra escovar os dentes e quando saí, bem, já estava noite.

As janelas do prédio têm cerca de dois metros de altura e têm a largura de toda a parede, com exceção de uma coluna ou outra.

Não dá pra ver o prédio que fica do outro lado, a menos de dez metros de distância.

Eu abro a janela e vejo a chuva mais furiosa da minha vida: cortinas d'água passam cinzentas à minha frente, e o vento uiva nas frestas das janelas.

O que significa que as pessoas que têm guias com prazo fatal começarão a tocar no meu ramal querendo saber delas. Porque o rapaz está com elas ilhado no banco.

Cruzo os dedos diante do meu monitor e penso no que fazer primeiro: me desesperar ou pedir as contas; pedir as contas da vida.

18h12m

Essa é a hora que eu normalmente estou comendo alguma coisa pra ir embora. Tomando um chazinho de camomila, mordiscando torradas com manteiga, escutando uma musiquinha e reclamando de alguma picuinha no Twitter.

Mas hoje, hoje, hoje; especialmente hoje, fui incumbido de fazer a segunda coisa que mais detesto no universo: digitalizar documentos. A primeira é lavar louça.

Não tem nada demais quando são duas, quatro ou cinco folhas; o problema é quando é um calhamaço de trinta folhas, algumas com dobras e rasgos e fissuras de tanto manuseio e tira-e-põe de grampos. E o problema dessas avarias nas pobres folhas é que você pode estar lá, indo pra vigésima folha, quando de repente ela engancha na máquina, fica presa, e você tem que retirá-la com todo o cuidado pra não rasgar, e recomeçar tudo de novo.

Eu tenho um calhamaço de trinta e uma folhas.

Um de vinte e duas.

E um de quatorze.

Elas estão bem usadas - contratos antigos.

Confissão: eu adoraria ter uma pia de louça até o teto agora.

18h40m

Acabei de conseguir sair da porra do scanner. Estou com a palma da mão doendo por causa de umas pancadas que dei na quina do móvel onde a máquina fica. Também estou sentindo a sola do meu pé palpitando, por causa de uma espécie de coice que dei no chão.

É por isso que os animais têm cauda: pra não se matarem com auto-agressão.

18h55

Eu finalmente estou saindo do escritório; com um pouco de fome, é verdade. Estou confiante de que chegarei rápido em casa, e de que o ônibus chegará rápido e tirarei um belo de um sono cheio de baba e ronco e ereção involuntária.

Ficarei no máximo até sete e dez no ponto, e, caso ele não venha, pego o trem e pronto.

19h22m

Acabei de desistir de pegar o ônibus e estou derrotadamente caminhando em direção ao Metrô. Com fome.

19h26m

Assim que passei a catraca e pisei na escada rolante, uma voz nos alto-falantes da estação anunciaram que estava havendo algum problema com usuário na linha e que o sistema seria normalizado dali quatro minutos.

Conforme a escada vai descendo, eu vou me arrependendo de ter saído daquele maldito ponto de ônibus: de um lado a plataforma está apinhada de gente; do outro, há uma composição parada, com as portas abertas e com as luzes apagadas.

19h46m

Ainda estou aqui na plataforma. Nesses vinte minutos passaram pouco mais que cinco trens, e não consegui entrar em nenhum deles.

No próximo eu acho que consigo entrar.

19h47m

Estou na parte dianteira do trem. Não dentro dele; permaneço na plataforma. Fico fitando o túnel, e observando aquela curva logo ali. E estranho: não há curva na Paulista. Fico medindo a distância, tentando adivinhar onde está locado o prédio em que trabalho - é comum estar sentado na privada pensando na vida e sentir o chão tremer a cada trem que passa dez andares abaixo.

Mas, aquela curva... Não há curva na Avenida Paulista.

E os trens do outro lado vêm e vão rápidos, precisos. Cogito a possibilidade de ir pra lá, descer no Paraíso e pegar a Linha Azul, e depois a Linha Vermelha e... Me recordo da Sé e deixo isso pra lá. Melhor ir pra Luz, mesmo...

19h50m

Consegui entrar. Espremido, colado à porta, mas entrei.

19h53m

A plataforma vai chegando do outro lado, na outra porta. E eu estranho: o lado que abre a porta é o lado que estou.

Quando a composição pára é que eu percebo o porquê daquela curva existir: é a curva da Praça Oswaldo Cruz, que é onde a Paulista termina. E isso é sentido Paraíso.

E eu estou na Estação Paraíso, quando deveria estar na Estação Consolação.

No outro extremo da Paulista.

Eu fiquei meia hora parado na plataforma do lado contrário e não me dei conta.

Faço estalar um tapa no lado direito do meu rosto e vou pedindo licença até conseguir sair antes que a porta feche e eu acabe perdendo mais tempo e vontade de existir ainda.

20h00m

Enfim, estou do lado certo. E não estou feliz.

Observei esse rapaz entrando - os braços tatuados me chamaram a atenção como sempre. O rosto desprovido de beleza dele também.

Aí ele parou do meu lado direito, pouco afastado e mais à frente, e um cara que está na frente dele deu um chilique meio que tentando acertá-lo com umas cotoveladas. Esse cara das tatuagens é meio magro, usa óculos e disfarçou das tentativas de cotoveladas como se não fosse com ele, enquanto o outro ainda olhou por cima do ombro como quem quer arranjar encrenca.

E eu fico extremamente excitado com essas coisas.

Esse outro tem cara de peão-de-obra subaquento, e tá com cara de quem tomou algumas.

O desejo de tomar as dores do rapaz tatuado e de extravasar a raiva que estou sentindo descendo o soco em nego folgado vão me deixando cada vez mais excitado.

Dado momento, o Senhor Encrenca joga a mochila no chão e faz uma cena que não entendo.

Então o trem pára na Consolação e vamos saindo.

O Peão-fedorento sai primeiro e espera o outro na porta, encarando-o. Um amigo de um amigo que é segurança da Via 4 está ao lado da porta, conversando distraído. Como ele é amigo do meu amigo, eu sei que antes das operações da Linha Amarela começarem a funcionar, esses seguranças, esses rapazes fortes da segurança, passavam cerca de 6 horas por dia tendo treinamento de jiu jitsu e muay thai. Esse segurança amigo do meu amigo foi em uma das minhas graduações de muay thai quando eu estava numa fase boa, e até hoje não esqueço do aperto de mão que ele me deu. Algo como um torniquete.

Se der merda, vai dar merda.

Se der merda, eu posso dar em quem merece e ainda sair incólume das porretadas da segurança, já que esse rapaz me conhece.

Mas o tatuado finge que não vê e sai apressado por entre as pessoas.

E todos descemos as esteiras rolantes, separados.

Eu de olho no peão, passando por entre as pessoas como se fosse uma espécie de Deus.

Quando não passa de um filho da puta que não merece respirar.

20h15m

Foi tudo tão rápido, tudo passou tão rápido diante dos meus olhos, que não pude agir de uma maneira decente e agora fico sentindo as dores daquela famigerada Filosofia de Escada.

O que aconteceu foi o seguinte: o miserável desceu pela primeira escada, e quando eu ia descer, os seguranças, que controlam o fluxo de pessoas na entrada delas (das escadas), fecharam a passagem pouco antes da minha vez. Aí fui pra outra, na outra ponta da plataforma; desci, e fiz o caminho de volta, uma vez que isso facilita no desembarque na Luz. E quem eu encontro novamente?

Encostei perto dele quando o Metrô chegou, e fiquei um pouco mais sossegado ao ver que ele encoxava a mulher dele.

Só que quando a porta se abriu e essa mulher andou pra frente, ele imediatamente foi para trás de uma OUTRA mulher, e ficou olhando pra bunda dela com olhar desvairado e inclinou o corpo pra frente, encostando na bunda dela; essa mulher, distraída, achando que era empurra-empurra comum, de repente estacou, percebeu a situação e saiu abruptamente da frente dele, dizendo "tá com pressa, vai"; ele ficou meio confuso e ficou parado; a porta fechou.

Eu não sabia se coagia a mulher a chamar a segurança, se descia a porrada no queixo dele sem aviso-prévio ou as duas coisas - acabei não fazendo nada, uma vez que a mulher raspou pra outra porta.

Decidi que folgaria com ele assim que entrássemos no próximo metrô. Aproveitei o tempo entre uma barca e outra pra avaliar o tamanho pedaço de esterco ambulante; tinha os antebraços fortes e a costas um pouco largas, mas nada de assustador pra quem fez dois anos de jiu jitsu e rolava com gorilas de cem quilos e ainda saía vivo e respirando sem dificuldade; eu tinha a desvantagem da fome e ele, possivelmente, a "desvantagem" da birita. Digo "desvantagem" porque é sabido que a embriaguez ameniza a dor, além de proporcionar a empáfia certa para uma briga - algo que mexe com os nervos de uma maneira assoladora.

Mas o que aconteceu é que eu me distraí dando passagem para algumas pessoas que saíam e ele entrou apressado e desapareceu indo pra outra ponta do trem (para quem não sabe, os da Linha Amarela são interligados).

Agora saboreio tudo o que eu poderia ter feito com um lixo humano desses...

20h45m

Estou em Itaquera e acabei de perder a lotação.

21h00m

Estou em Itaquera, e a lotação acabou de se mover.

21h15m

Estou na porra do Extra, esse mercadinho de bosta do caralho, que tem o maior contingente de funcionários burros que eu posso conceber com a minha parca inteligência, segurando um pote de Neston e dois latões de Itaipava, porque é tudo o que eu preciso nessa porra dessa noite de segunda-feira miserável dos infernos.

23h17m

Estou com as duas latas já secas, aniversariando namoro com a dona do sorriso mais lindo, fedendo, ouvindo "João Não Quer Lutar", e querendo ser o João, se acaso a terça-feira resolver ser uma cópia carbonada dessa segunda do quinto dos infernos.

23/01/2011

Flicts - João Não Quer Lutar

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 24/01/2012
Reeditado em 24/01/2012
Código do texto: T3457945
Classificação de conteúdo: seguro
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