Calcinha de renda

 

Descobri o mel e o fel do amor ainda em tenra idade. Por vezes, o conquistador vitorioso, outras, o gladiador derrotado. Muitas outras, o amar calado, paixões proibidas, perigosas ou impossíveis.

 

Uma grande paixão me arrebatou aos nove anos, na quarta série do primário.

 

Naquele último ano do grupo escolar, tive a felicidade de sentar-me ao lado da menina que eu gostava. Ela, à minha esquerda. Lado do coração.

 

Não sei se foi sempre assim e se hoje essa prática ainda persiste, mas a secretaria da saúde percorria as escolas para vacinar toda a criançada. Acho que era a BCG ou um reforço dela. A danada da vacina, dias depois, provocava uma pequena inflamação, seguida de uma terrível coceira, no local da aplicação, e deixava uma duradoura cicatriz, muitas vezes permanente.

 

Os meninos eram vacinados no braço e as meninas no alto da coxa direita. Não sei bem o motivo. Acredito que, naquele tempo, os machos podiam ter braços feios e as mulheres não. Como ainda não haviam inventado o biquíni fio dental nem a tanga, e ninguém imaginava que um dia seriam inventados, não fazia mal enfeiar as coxas das moças, porque só o marido teria permissão para conferir a marca da vacina, anos depois. No máximo, um noivo mais atrevido.

 

Todo mundo imunizado, entramos na fase dos braços e coxas inflamados e coçando.

 

Considerando que a minha paixão estava ao lado, mantinha sempre um olho no quadro negro ou na professora e outro na menina que eu amava. Numa dessas olhadas furtivas, dei com ela levantando a saia para coçar em volta do local da vacina.

 

A coceira devia estar insuportável porque ela nem me percebeu. Paralisado e com o queixo caído. Olhos fixos na coxinha branca.

 

Pensei que tivesse morrido e sido lançado ao paraíso. Direto, sem escalas e sem ao menos pagar fiança no purgatório. Não vi mais nada em volta. Apenas um conjunto imaculadamente branco. O avental, a saia, o curativo de gaze preso à alva coxa com dois esparadrapos em cruz. E a calcinha branca adornada com rendinhas.

 

A cena pode ter demorado apenas alguns segundos, um minuto talvez. Todavia para mim, foram deliciosos anos no éden. Demorei em voltar à realidade da aula. Sair daquele torpor e voltar a concentrar-me na lição, custou-me quase a manhã inteira.

 

Torci para que ninguém tivesse notado o descuido da minha querida. Morreria de ciúme se outro garoto tivesse visto o que eu vi. Se viessem com comentários maldosos, iria às vias de fato. Como ninguém comentou nada, acho que vi sozinho. Guardei segredo.

 

O momento de luxúria pueril só fez aumentar meu sentimento pela menina. Acredito que no inconsciente, alcei-me ao posto de guardião do seu tesouro. Sentia sua falta nos finais de semana. Ás vezes a saudade era tanta, que eu saía de onde morava, não muito longe, só para rondar a casa dela. Nunca a via e não tinha coragem de bater à sua porta.

 

Jamais vi alguém gostar da segunda-feira, mas era um dia que me alegrava. Voltava a vê-la todos os dias, até a próxima sexta. Quando ela se atrasava um pouco, temia que não viesse.

 

Para fechar o ano e comemorar o encerramento da primeira etapa escolar das nossas vidas, as professoras decidiram organizar uma formatura. Missa na Igreja do Divino Espírito Santo e Nossa Senhora das Graças, rezada pelo cônego Oswaldo Neumann, e solenidade na Sociedade Beneficente Cruzeiro do Sul. O governador Moysés Lupion e o prefeito Iberê de Mattos, juntamente com outras autoridades e importantes em geral, receberiam homenagens especiais.

 

A empolgação estava no ar. As professoras, os alunos, a diretora. Paraninfa e patrona escolhidas. Eleição dos oradores. Um para a turma da manhã e outro para a da tarde. Na minha, a da manhã, fizeram-me candidato.

 

No dia da apuração, eu curtia muito mais a vibração da menina amada a cada voto a meu favor, do que o voto em si. Deliciava-me com o rostinho sorridente e as mãozinhas frenéticas aplaudindo cada sufrágio conquistado. Entre a abertura de um papelzinho e outro, sua torcida angustiada. Ganhei folgado, mas, com  torcedora tão especial, nem precisava. No meu coração a eleição já estava ganha.

 

Os convites foram impressos e distribuídos. Eu trabalhava no meu discurso. O que eu deveria dizer? Sobre o que falar? Nunca tinha ido a uma formatura...

 

Não cheguei a terminar de escrever o discurso. Semana antes da data marcada, veio um balde de água fria da secretaria da educação. Nada de formatura.

 

Foi duro para as professoras dar a notícia aos alunos. Clima de velório na escola. Lembro que ameacei chorar. A professora Zuleika, com tapinhas de carinho no meu rosto murcho com a decepção, tentou consolar-me.

 

- Não fique triste, João Carlos. Você terá outras formaturas.

 

O ano terminou. Cada um seguiu seu caminho. Segui o meu fazendo o exame de admissão ao ginásio - uma espécie de vestibular para continuar os estudos - no Colégio Senhor Bom Jesus, onde fiquei por onze anos, até sair com três diplomas e duas profissões. Ginásio, Técnico de Contabilidade e Ciências Econômicas. A professora Zuleika tinha razão, haveria outras formaturas. Na última fui o orador. Dessa vez, sem eleição. A generosidade dos colegas me aclamou por unanimidade.

 

Quanto à menina que me fez tonto de amor, nunca mais a vi nem tive notícias dela. Se queria vê-la agora? Não sei. Não gostaria que ela visse o que os anos fizeram comigo e tenho medo do que possam ter feito com ela.

 

Não quero fazer a minha viagem aos seios de Duília. Melhor a lembrança terna do seu rostinho feliz com a minha eleição, agitando as mãozinhas no ar e aplaudindo cada voto. E da calcinha branca. De renda.



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N. do A. 1 - Viagem aos Seios de Duília é um conto de Aníbal Machado, que foi adaptado para o cinema em 1964, sob a direção de Carlos Hugo Cristensen e tendo Rodolfo Mayer no papel principal. Recomendo sua leitura, mas não a viagem, a todos os coroas como eu, homens e mulheres, que viveram intensamente suas paixões de infância e adolescência e delas ainda se lembram com saudade. Quem não as teve ou acha que recordá-las é falta grave, que me atire a primeira pedra.

 

N. do A. 2 - Na ilustração, a professora Zuleika Moro com os alunos que terminavam o curso primário no Grupo Escolar Prieto Martinez, em 1959, turma da manhã, defronte a escola no bairro do Bom Retiro, Curitiba - PR. O autor e sua musa entre eles.

João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 19/01/2012
Reeditado em 10/02/2022
Código do texto: T3449471
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