DDD - Diário de Derrotas [16]

12h50m

Tédio é uma palavra que deveria ser banida do planeta. Pessoas que vivem entretidas, que vivem de passeios e rolês, que vivem sufocadas por trabalhos de faculdade ou por problemas de cunho sentimental; pessoas que quando se vêem longe de qualquer uma dessas coisas, e encontram-se entediadas, sempre me procuram. E sempre perco a amizade delas quando me vejo sendo procurado sob os auspícios do tédio alheio: minha retaliação é imediata e contundente.

Me vejo entediado agora, e não há nada que faça com que essa sensação desgraçada largue do meu corpo.

Fiz tudo o que tinha que fazer com uma rapidez anormal, e não me sobrou praticamente nada além de esperar a resposta de um e-mail, que provavelmente me fará bater dois carimbos e abrir duas planilhas. Um processo que durará dez minutos, quando muito.

Já sentei na privada pra pensar, já li cinco autores diferentes no Recanto das Letras, já chequei todas as minhas redes sociais e e-mails e o tempo simplesmente não passa.

Estou sozinho, todos foram almoçar, e isso deveria ser um paliativo, mas se tornou um agravante na minha modorra desgramenta. E, pra piorar, estou sem fome.

Caralho...

13h24m

Toda vez que cruzo esse corredor e antevejo as mesas do restaurante, bem como os inúmeros pratos vegetarianos, fumegantes ou não, algo em mim me incita a dar meia volta, simplesmente para evitar revertérios estomacais e economizar um pouco.

Mas é o único restaurante que tem suco natural à vontade e um banheiro decente para aliviar as tripas, caso isso se faça necessário.

Tem muitas modelos por aqui também.

Deve ter alguma agência de modelos nesse prédio.

Elas são magérrimas, com suas cloacas sobressalentes, cambaleantes, com ossos que oscilam na quebra fácil etc, e com ares de soberba que me irritam.

Estive mastigando uns quadradinhos de tofu, na falta de coisa melhor pra comer.

Até pra comer estou entediado.

Que dia.

Com o garfo na altura do rosto, deixando um quadrado grande de tofu embebido em shoiyu na altura da boca, estico a língua, e a textura de tal iguaria me lembra uma matéria de uma revista que, pelo que me consta, só teve duas edições; uma matéria em que um experimento científico - ou não - tentava chegar no sabor do sexo oral - para ser mais preciso, no sabor da boceta. E a coisa, segundo eles, tem gosto de tofu com suco de abacaxi.

Estou bebendo suco de abacaxi.

Ao lembrar de tal situação, joguei os pedaços restantes do tofu na boca e dei uma bicada no copo.

E não tem gosto de boceta nenhuma, penso.

Pelo menos das que eu já tomei conhecimento.

A textura é parecida, é sim.

Então termino essa última rodada de comida e vou até a mesa de sobremesas: gelatinas, frutas, canjica, creme de goiaba, mousses, manjar, e bolo de chocolate.

Pego um mousse de cor roxa, meio rosa, quase vermelho - deve ser de frutas vermelhas.

Não tem gosto de nada, porém, a luz que paira acima da minha cabeça refletida no suor róseo da minha sobremesa me lembrou sabe o quê?

Uma criança de quatro anos no máximo está com os pais na fila, e essa criança tem dreadlocks, e está emburrada com alguma coisinha, e a mãe dele abaixa pra ficar mais perto do rosto dele, e a mãe dele é uma dessas modelos, trajando uma calça suplex preta, e eu não sei o que fazer com tanto erotismo durante um simples almoço.

Pago minha conta e pego um copo descartável pra encher de chá - nada daqueles copinhos de dois goles.

Já na calçada da Avenida Paulista eu tento entender esses anticorpos que a maioria dos homens tem.

Porque parece ser um mecanismo de defesa do organismo não reparar nas oitenta mil gostosas que cruzam pra lá e pra cá o tempo inteiro o dia inteiro toda hora.

Caralho.

18h23m

Faltam 7 minutos pra eu ir embora, e eu passei as últimas quatro horas tentando lembrar de alguma coisa que porventura eu tivesse esquecido de fazer - e sem ter tido sequer uma ideiazinha safada pra escrever (e sem sucesso, por sinal), mas, não, fiz tudo, não tem nada pra fazer, e a sensação de dever cumprido não é das mais legais de se sentir quando se está dentro de um ambiente de trabalho onde seus braços cruzados por simples falta do que fazer podem virar motivo de picuinhas. Vocês sabem do que eu estou falando.

Vou ao banheiro escovar um dente por vez pra ver se a hora passa e esse expediente geológico acaba.

Porra, viu?

06/01/2012 - 18h29m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 06/01/2012
Reeditado em 06/01/2012
Código do texto: T3426240
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