Mona Lisa 
 
 
Embora conhecesse bem o seu pai e o irmão, nunca soube seu nome e jamais falei com ela. Eu a via sempre no ônibus e a achava parecida com alguém que conhecia, mas não conseguia me lembrar com quem. Um enigma.

Toda vez que olhava para aquele rostinho sereno, na moldura dos longos cabelos louros e extremamente lisos, eu me perguntava: parecida com quem esta menina? Com uma prima? Uma amiga? Uma vizinha que tive? Vidas passadas? Não soubesse a família e onde vivia, teria me perguntado de onde ela teria vindo. De que estrela? De qual galáxia? De que outro lugar na Terra?

E era assim. Eu entrava no ônibus e, quase sempre, lá estava ela. Teimando na coincidência. No sentido bairro, descia um ponto antes do meu. Ia-se e deixava comigo a dúvida. Através da janela ainda a olhava na calçada da via principal, seguindo para a rua onde morava.

Eu com meus dezoito ou dezenove e ela na graciosidade dos treze ou quatorze, meio menina, meio moça. Nunca tive por ela outro interesse que não fosse admirá-la como quem aprecia uma obra de arte. Uma pintura ou uma escultura não precisam ser belas nem feias para provocar admiração ou repulsa. Ao seu modo, a polaquinha era muito bonita e do seu rosto emanava uma luz capaz de iluminar o quarteirão inteiro. Entretanto o sorriso discreto e permanente guardava uma timidez que talvez nem existisse dentro dela. Mas estava ali, na aparência.

Já me acostumara com a gostosa tortura de tentar me lembrar com quem ela se parecia. Uma tarde, porém, sem aviso nem nada, o mistério se desfez como uma força que me salvava daquele estranho masoquismo. Eu sentado, ela junto à porta para descer. Pela perspectiva do meu ponto de vista elucidei a charada. Como não tinha percebido antes? Ou teria percebido e não acreditava? Ela caminhando na calçada e eu a olhando mais uma vez pela janela do ônibus em movimento. O discreto e enigmático sorriso no seu rosto iluminado. Só havia um no mundo.

- Claro, é a Mona Lisa! Essa loirinha é a cara da Mona Lisa - quase deixei escapar meu pensamento em voz alta para que todos ouvissem e concordassem comigo.

Mesmo que a Mona Lisa não fosse loura nem tivesse os cabelos tão lisos, não havia dúvida. Era ela.

A partir da afortunada descoberta, cada viagem de ônibus, na companhia silente da polaquinha, significava para mim um dia ganho. Enorme prazer e felicidade em dividir aquele espaço com ela.

Os anos foram passando lentamente. Namorei, casei, fiz filho. Deixei de andar de ônibus e nunca mais vi a Mona Lisa.

Bem mais tarde, eu quase sessentão. Para levar minha filha adolescente à escola de inglês, passava na frente do antigo endereço da moça. Havia anos não transitava por lá. Uma tarde não resisti. Parei o carro do outro lado da rua e deixei vir à memória a casa de madeira caprichosamente conservada, que dera lugar a um condomínio de sobrados.

Apontando para o local, disse para minha filha:

- Ali existia uma casa com um amplo jardim, onde morava uma polaquinha que era a cara da Mona Lisa.

- Mona Lisa, a Gioconda?

- Sim, Mona Lisa La Gioconda. Do Leonardo. Mas prefiro só Mona Lisa. É mais suave, lírico. Gioconda, não. Parece nome de serpente. Mona Lisa soa melhor. Então, só Mona Lisa.

Duas vezes por semana minha filha tinha de ouvir a mesma ladainha. Sorte dela que a volta era por outra rua. De tanto eu contar a mesma história, ela já não aguentava. Perdeu a paciência.

- Pai, não precisa mais falar. Já sei. Ali morava uma polaquinha que era a cara da Mona Lisa. Só Mona Lisa. Nada de Gioconda.

- Pois é, minha filha. A Mona Lisa morava ali.

Oxalá o tempo, ora implacável destruidor de sonhos, outras vezes amálgama para as feridas da alma, tenha respeitado a luz do rosto da polaquinha. Que o seu sorriso tímido ainda seja capaz de encantar a todos os que saibam decifrar o seu enigma. Que ela continue espalhando por aí momentos felizes, iguais àqueles que entregou para mim em cada encontro silencioso.

Da minha parte, sou-lhe imensamente grato. Pelo menos por uns tempos, a Mona Lisa deixou o Louvre, atravessou um oceano e veio andar de ônibus comigo.


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N. do A. - Na ilustração, Mona Lisa de Leonardo da Vinci (Itália, 1452 - Fança, 1519).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 29/12/2011
Reeditado em 30/04/2021
Código do texto: T3412269
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