Reminiscências de Castelo

Gostava de ficar ali. Achava que aquele lugar mais resumia sua vida. Marina da Glória. Outrora conhecida como Saco da Glória. Ali conhecera sua amada. Ali avistara, pela primeira vez, o que queria dizer Machado de Assis sobre lembranças da infância. O Bruxo do Cosme Velho dizia que estas eram inesquecíveis. Então ficava ali, olhando a Marina, os morros, os barcos, o espelho d’água, um casal que arriscava o atentado ao pudor. Pudor? Rira deste terrorismo delicioso...

Nunca houve uma pedra em seu caminho. Não, pelo contrário, o caminho que trilhara foi sempre livre de pedras. Trilhara o caminho mais delicioso disponível. Muitos diriam que seria um covarde, mas ele retrucaria: - Idiotas! Como chamar Leibniz de covarde? Vocês não entendem da vida, do sentido, da alma, do ser...

Uma jovem perguntara sobre as horas. – Seis... Tempo, tempo, tempo... O tempo machuca aquele que o tem em demasia e incomoda aqueles que o têm pouco. Aquele que já consumiu bastante desta maldição matemática, qual um viciado, fica em busca de mais pelas esquinas mais duvidosas e perigosas da Cidade de São Sebastião. E aqueles que não sentem sua falta, vivem como se ele não existisse. Indiferença. Saudades de ser indiferente...

Aquela questão de Camus sempre o incomodara. Desde a primeira vez que lera o seu livrinho. O que realmente faz a vida valer a pena de ser vivida? Para Camus esta deve ser a preocupação primordial da Filosofia. De que vale entender os movimentos das marés? De que vale entender o funcionamento dos motores dos barcos que rotineiramente partem e chegam na Marina? De que vale saber as horas? Se o que realmente quero saber se a vida vale a pena ser vivida. Como essa questão incomoda àqueles que têm experiências tais que o fazem íntimos da finitude certa. Assim como Camus, achava-se um Homem Absurdo. Na verdade achava que absurdo era aquele que vivia indiferente a esta questão. Uma outra verdade era que sabia que aquele que vivia indiferente a esta questão vivia por medo. Medo de perder sua verdade, seu sentido...

Se Machado de Assis estava certo sobre as lembranças perenes da infância, perguntava-se: - Por que não consigo lembrar do nome daquela música que me fazia chorar naquelas tardes gostosas dos anos 70? Achava que as lembranças dos anos 70 se perderam juntas com a sua geração perdida... E ria.

- Minha verdade. Falava de si para si. – Quando pensei organizar minhas verdades, descubri que não tinha verdades, apenas opiniões incertas sobre tudo. - Opiniões incertas não seria redundância? – Descubri que meu Deus é só Deus para mim, pois para um outro nada mais é que desejos tolos e pueris de um ser abandonado ao acaso. - Freud deveria rir disso... – Acho que Freud não era dado a risos. E ria.

Uma vez lera num livrinho de Kundera que Deus é o acaso. O acaso era uma força invisível que manipulava todo cenário humano. Os homens o chamavam destino. Mas Deus ria destes conceitos humanos. Ele dizia: - Deus é uma grande personagem do teatro shakesperiano, Ele sempre gostou de baile de máscaras...

Um amigo uma vez pedira a ele, numa fase de sua vida, que definisse Deus. Eis a sua resposta: - Deus é uma palavra manipulada entre dois extremos, a saber: a ironia e a loucura. A ironia encontra-se em Cristo e a loucura em Nietzsche. Cristo não querendo ser Deus o fizeram Deus, Nietzsche querendo ser Deus o fizeram Cristo.

Agora ele ria. Estava a minha espera, o velho Castelo. Eu já tinha chegado alguns minutos, mas ficava ali, um pouco distante, sem deixá-lo me ver, apenas para contemplar aquela figura que sempre me fascinara. Quando me aproximei, ele abria os braços e me recebia sempre da mesma forma: - Meu pequeno...

03/01/07

Rodiney da Silva
Enviado por Rodiney da Silva em 07/01/2007
Código do texto: T339688
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