ADEUS, TABU
ADEUS, TABU!
Foi no final de 66 que conheci o Tabu. Dirigia-me ao trabalho, na construtora, situada na Vieira de Carvalho, quase esquina do lgo. do Arouche. Descera do lotação na Rio Branco e seguia pela Vitória - em algumas das placas oficiais a grafia ainda era Victoria - quando a chuva, que era fraca, ficou bastante forte. Apertando o passo, segui colando-me às paredes dos prédios, cruzei a Guaianases, mas quando passei a Conselheiro Nébias a chuva apertou mais. Abriguei-me sob um toldo. Sob este, a entrada de um restaurante. Era a porta do Tabu.
Duas coisas despertaram meus sentidos. Um visual, outro olfativo. O visual, pela pilha de madeira à porta. Pedaços de pontaletes e tábuas de construção amontoavam-se na calçada. Um funcionário vinha de quando em quando e levava um pouco para dentro. Havia uma porta de madeira, na verdade duas meia-portas, tipo vai-e-vem, envidraçada, mas com cortinas brancas, que estavam cerradas. A outra metade da entrada era ocupada por um grande refrigerador, cujos grossos vidros davam para a rua. Viam-se, ainda que embaçadas, peças de carnes, frangos, peixes, legumes e verduras variados.
Nas idas e vindas do funcionário, dava eu uma espiadela. Salão de uns vinte metros de fundo por uns dez de largura. Pé direito alto. Azulejos brancos até a metade. Prateleiras ao longo das paredes com muitos vinhos. Luminárias fluorescentes. Cerca de trinta mesas, distribuídas em três fileiras, duas laterais e uma central. Esta, com mesas coladas umas às outras, fazendo duplas. As cadeiras, pela hora da manhã, ainda estavam invertidas, sobre as mesas sem toalhas. O chão, em razão da chuva, estava coberto de serragem.
Ao fundo do salão, um balcão separava este da cozinha, parcialmente fechada por vidros, com guichês por onde se divisavam grandes caçarolas, caldeirões, panelas e frigideiras, um fogão de chapa e outro de bocas onde ardiam as tábuas e os pontaletes que eu vira lá na calçada. É, em pleno centro de São Paulo, nos anos 60, alguém ainda cozinhava à lenha.
Embora não fossem ainda nove da manhã, o odor da cozinha já era intenso. Mais tarde vim a saber que o Tabu funcionava praticamente dia e noite, com os sócios Passos e Failde revezando-se na direção, sem interrupção, o ano inteiro.
O aroma vindo da cozinha me remeteu à infância vivida em minha cidade natal, Espírito Santo do Pinhal, situada a duzentos e poucos quilômetros da capital, mas quase na divisa com Minas Gerais. Cebola e alho, cheiro verde, pimenta do reino, pimenta vermelha, alecrim, louro. E toucinho. Tudo cozido ou frito na gordura do toucinho derretido.
Não me recordo se lá almocei naquele dia, ou naquela semana. Mas lembro-me bem que, no primeiro dia em que lá fui almoçar, perguntei a um freguês, que me pareceu ser dos mais antigos, se a comida era boa, e ele simplesmente: “ Faço aqui minhas refeições há quase vinte anos e olha minha saúde!”
No Tabu comia-se bem, e com fartura. Os pratos, variados diariamente: carne cozida com legumes  chamado no cardápio de “vitela à caçadora” , virado à paulista, dobradinha à moda do Porto, feijoada (uma das mais famosas de São Paulo), macarronada com frango, arroz à moda de Braga, bacalhau à portuguesa, bacalhau à espanhola, fígado à veneziana, cozido à Argentina, almôndegas, bife à rolê, rabada com polenta, miolos à doreé, filé de peixe com pureé, língua à moda, caldos, sopas, omeletes, salada completa, frango à passarinho, rãs à doreé. Esses pratos eram escritos no vidro da porta e do refrigerador com tinta branca feita à base de alvaiade.
Bebia-se bem, também. As prateleiras do Tabu tinham bons vinhos, nacionais, e até alguns portugueses, e um conhaque muito bom, o Castelo. O aperitivo às vezes era tomado ao pé do balcão, enquanto se esperava uma mesa, pois a casa vivia cheia. Os clientes habituais serviam-se sozinhos, bebericando seu copito e conversando com o “seu” Ernesto, o Failde, durante o dia, ou com o “seu” Passos, no período noturno.
Os anos foram passando e tornei-me também um freguês, tratado pelo nome, cumprimentando e sendo cumprimentado, ocupando quase sempre a mesma mesa, a primeira junto ao balcão, à esquerda. Almoçava, às vezes jantava. Levava os amigos. Casei-me. Lá fui com a esposa várias vezes. Vieram os filhos. Também eles conheceram o Tabu.
Mais anos se passaram. Saí da construtora. Fui trabalhar em outras empresas. Mudei-me de bairro, de cidade. Vez ou outra, indo ao centro, dava um jeito de lá ir almoçar. A comida ainda era boa, mas alguns pratos, os mais caros, e outros já não tão a gosto da nova geração, não mais constavam do cardápio. A clientela também não era mais a mesma, e a casa já não vivia tão cheia. Nem era mais necessário esperar mesas. O expediente agora era só diurno, e à noite fechava por volta das vinte e duas horas. O “seu” Passos fora assassinado num assalto, numa madrugada. Os cabelos do “seu” Ernesto Failde tinham rareado e estavam brancos. Atrás do balcão agora ele ficava sentado num banco alto.
Nos anos 60, quando o conheci, iam ao Tabu, pois moravam por perto ou freqüentavam a região: Pagano Sobrinho, Joel de Almeida, Chocolate, Maurici Moura, Silvio Caldas, e outros artistas e profissionais menos conhecidos da música, cinema, rádio, televisão, circos, e teatro, principalmente os de revista (O Natal, na praça Julio Mesquita, o Santana, na travessa da av. Ipiranga (remanescentes de uma época que já agonizava) Cruzava-se com motoristas de taxi, policiais, vendedores, prostitutas, malandros e bicheiros, jornalistas  a “Folha” estava a poucas quadras, na Barão de Limeira , e grande parte dos empregados do comércio da região. Camareiras dos hotéis próximos, aqueles que não dispunham de cozinha, vinham buscar refeições para os hóspedes, não deixando de tomar seu aperitivo, enquanto esperavam. Por volta das quinze horas, moradores de rua, com recipientes dos mais diversos, chegavam para as sobras, que não lhes eram negadas. No ano de 1974, sob a direção de Carlos Manga, lá foram rodadas cenas de “O Marginal”, com Tarcísio Meira e Darlene Glória. Eventualmente, músicos e dançarinas do Avenida Danças vinham jantar antes do trabalho.
Mas o tempo, sempre o tempo, foi mudando as pessoas, foi mudando a cidade. Nós fomos sentindo a mudança. Nós também estávamos mudando.
Num certo dia, de um certo mês, no ano de 95 ou seria 96?  não importa , ao empurrar as portas vai-e-vem do Tabu não vi o “seu” Ernesto atrás do balcão. Em seu lugar estava um rapaz alto, cujas feições lembravam o pai. Cumprimentei-o de longe com um aceno da cabeça. Nada perguntei, pois não era necessário. Sentei-me à mesa e fui servido por um garçom desconhecido, não mais o Wilson ou o Manoel. A comida não me desceu bem, embora continuasse boa. Acho que nem terminei o prato. Tampouco não me lembro qual foi.
Poucas vezes voltei a passar pela rua Vitória, mas naquela que foi uma das últimas, a porta de aço estava cerrada, bastante suja, já sendo carcomida pela ferrugem. O toldo, em farrapos, já quase nem existia mais. O letreiro de néon, com os dizeres “Restaurante” na horizontal e “Tabu” na vertical, que por cerca de quarenta anos brilhou naquele trecho entre a Conselheiro Nébias e a praça Júlio Mesquita, estava com os fios partidos e as letras quebradas, quase a cair na calçada.
Adeus, Tabu!
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