Reflexões sobre meus quarenta anos e uma cadela agonizando

Um dia atrás encontrou Márcio e eu, uma cadela agonizando de dor e medo na calçada em frente a uma escola de teatro e dança; era preta de pelos grossos e sujos, magra a ponto de deixar visíveis as suas costelas, queria demonstrar certa elegância na sua magreza, apesar de ser difícil estar elegante, condicionado pela fome; respirava ofegante e tinha o olhar sonolento, mas gentil de alguém que espera..., estava morrendo num dia de feriado vazio e espaçoso.

Os dias de feriado para mim parecem estender o tempo, dobrar as horas e prolongar a vida; nos dias de feriado abrem-se os campos e extensões e a linha do horizonte parece muito maior, não há limites para onde eu possa correr, nem para a cadela, sobretudo para as pessoas que a atropelaram... Literalmente duas vezes.

Sempre fiquei imaginando, depois dos quarenta anos as pessoas mudam suas posturas e ideais radicalmente, por imposição do tempo ficamos mais velozes e impassíveis, não dá para esperar as coisas acontecerem, é preciso buscá-las com força e se for necessário, passar por cima de qualquer um; daí que aquele jovem ecologista feroz virou um latifundiário produtor de eucaliptos: - EM POUCOS ANOS EU VOU FICAR RICO! ; o sociólogo virou o presidente da sociedade dos capitalistas de vanguarda (um grupo bastante seleto) – VAMOS PRIVATIZAR AS UNIVERSIDADES E POTENCIALIZAR OS CURSOS TÉCNICOS; Um estudo científico que é repetido constantemente nas faculdades diz: as porcentagens quase absolutas das pessoas que se tornaram ricas, assim o ficaram antes dos quarenta anos. A expectativa da morte consome os pensamentos, a efemeridade da vida estende-se e expande como os feriados, trabalhando arduamente para integrar-se a nós e então num rompante, descobrimos que temos que correr.

A cadela tinha convulsões e se contorcia em intervalos, e neste momento usava suas últimas forças para gritar, seu pulmão estava perfurado e a dor esmagava-a como por uma roda de carro.

Um carro é possivelmente em nossas vidas, um dos maiores objetos de desejo, como resistir a tantas propagandas interessantes, inteligentes e sedutoras; resistir a todos os efeitos e acessórios que oferece, além disso, nos coloca em uma condição de status.

Penso na sensação de estar dirigindo como ter super poderes, somados é claro a aqueles acessórios que dão uma levantada de efeito “super” no carro e em nós, afinal, Lois Lane só dá bola ao Super homem; e o que acontece afinal quando estamos chegando ao meio do caminho e não realizamos nossos desejos, ou nem parte deles, não rolou os super poderes e a frustração virou uma espécie de hormônio do egoísmo e do egocentrismo, se tiver alguém do meu lado, não vou olhar; se falar, vou fingir que não é comigo; se ficar na minha frente, eu vou atropelar.

Penso que alguns conhecidos meus não deram essa levantada “super” nos seus carros e na sua vida.

Ela era ainda um filhote, mal sabia viver na cidade-selva, e os olhares curiosos demonstravam uma surpresa amarelo-pálida muito envelhecida pelo tempo e pela chegada da contemporaneidade, ao mesmo tempo em que imaginavam uma redoma de vidro que a envolvesse e evitasse qualquer tipo de contato, inclusive psicológico, pois poderiam, sabe-se lá, pegar uma doença perigosa nos dias de hoje chamada: compaixão.

Ultimamente saímos embalados em um plástico pelas ruas, pra ninguém nos ver direito e nem tocar.

Está mais fácil falar com as pessoas através do plástico, visualizar as pessoas na redoma de vidro, sinais do tempo, sinais do amadurecimento do mundo? De sua passagem para a meia idade sem realizar grandes desejos ou adquirir superpoderes... E compaixão não combina com progresso... (Mundo, Web mundo; o que seria de mim se eu me chamasse Fernando, Marcelo, Rodrigo; e não me chamasse Raimundo; se não fosse um cachorro imundo.)

Mesmo com todos os esforços que eu, Márcio e o veterinário fizemos, Clarisse morreu (nós demos um nome a nossa ex-futura cadelinha), e por pouco não morreu despachada, como os favelados na mira do extermínio, como os que devem no tráfico, os bebês jogados nos rios, as crianças raptadas, os pombos esmagados nas ruas das cidades, como num sacrifício a algum deus urbano ávido de se alimentar das pequenas e grandes tragédias do dia a dia.

Bem, diante dessa atitude, eu imagino que beirando os meus quarenta anos, eu seja um desses afetuosos patológicos circulando, com os sintomas variando entre mais ou menos intensos, nada a ver com moral ou politicamente correto, é um defeito de vivência, tal e qual a uns poucos que perambulam por aí.

Enterramos Clarisse num terreno baldio em frente à Catedral, consideramos justo que como não teve uma vida digna e plena, pelo menos a morte não se resumiria num latão de lixo, e se Deus é por todos nós, então será sim, por todas as criaturas deste mundo.

Não choramos o seu falecimento, mas a dor e o apego transbordam do espírito, e por que precisamos estar rígidos e sentinelas, de olhos atentos sobre esses espaços que se desdobram no espaço, donde surgem carros angustiados e cães atropelados pelo recalque dos homens.

Vinícius Magalhaes
Enviado por Vinícius Magalhaes em 03/11/2011
Código do texto: T3315551
Classificação de conteúdo: seguro