Cristo e Kadafi: cadáveres expostos

     Comecemos por Kadafi.
     Ou Muammar Abu Minyar al-Gaddaf, o nome que certamente consta de sua Certidão de Nascimento.
     Como se acabou sabendo, Kadafi nasceu na cidade de Sirte em 7 de julho de 1942 e morreu na sua cidade natal em 20 de outubro de 2011.
     Como tirano atrevido, governou a Líbia entre 1969 e 2011, quando foi assassinado.

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     Que Kadafi foi um ditador sanguinário, ninguém tem a mais leve dúvida. Falem os líbios que estiveram sob seu impiedoso azorrague durante mais de quatro décadas.
     Depois das atrocidades que praticou, uma vez derrotado no campo de batalha, sua execução pelos vitoriosos era de se esperar. E não deu outra.

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     Que ele devia ser severamente castigado, ninguém discute. O difícil de se aceitar é a sua execução sumária, num surto de irracional vingança dos revoltosos, que o tiraram do poder. Todos transtornados e transformados em verdadeiros algozes.

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     Capturado ainda com vida, o normal seria que ele fosse levado aos Tribunais, e lhe fosse assegurado o sagrado direito de defesa. Não aconteceu!
     Neste particular, os iraquianos foram mais inteligentes e mais sagazes quando puniram o ditador malvado Saddam Hussein.
     Embora se soubesse que sua morte na forca seria uma questão de tempo, o déspota de Bagdá compareceu à Corte de Justiça do seu país, e teve a oportunidade de se defender das acusações da prática de crimes considerados hediondos.

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     Creio que os líbios teriam agido melhor se tivessem levado Kadafi às barras dos Tribunais. 
     Erraram quando, de maneira grosseira, executaram, lincharam, sumariamente, o arrogante tirano de Trípoli.      
      Ainda que o Kadafi fosse, como de fato foi, um calhorda, desumano, desapiedado. Ainda assim.

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     Não alimento qualquer sentimento de compaixão pelo tirano linchado. Aqui, apenas me declaro contra a que se condene uma pessoa, seja ela quem for, tenha ela maior ou menor periculosidade, sem que lhe seja dado o direito de se defender.
     E não estou só na defesa deste ponto de vista. A revista Veja desta semana, por exemplo, traz uma matéria no mesmo sentido. Leia-se a matéria com cuidado e boa vontade.

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     Erraram, também, os líbios, quando entregaram à mídia, insaciável e inescrupulosa, fotos e vídeos do ditador antes e no momento de sua execução. 
     São imagens, diz a Veja, de "embrulhar o estômago.
     Errou a imprensa quando, de posse dessas fotos horripilantes, não hesitou em publicá-las.

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     Estou com o respeitado cronista Carlos Heitor Cony.
     Na sua crônica Fatos e Fotos, agora publicada nos principais jornais do país, comentando a execução de Kadafi, escreveu: "Merecia o fim que teve, nem por isso a foto do seu cadáver mutilado serviria para confirmar a tese de que o crime, no final das contas, não compensa."
     E lembra uma coisa, que testemunhei quando, há décadas, andei trabalhando em alguns jornais. 
     Disse Cony: "Antigamente, nas velhas radações, evitava-se a publicação de fotos impactantes."
     Vai mais além o Cony tratando da exposição pública de cadáveres de famosos, entre eles, Ernesto Che Guevara, Benito Mussolini e o nosso Tiradentes.

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     Mas é sobre o cadáver de Cristo, segundo Carlos Heitor Cony, "sem dúvida o corpo mais exposto da história, em toda a sua crueza", que me pareceu tocante e consagrador o momento de sua crônica.
     Houve sempre quem defendesse o crucifixo sem a imagem do crucificado sangrando. Bastaria o lenho enxuto, como símbolo maior e mensageiro direto do cristianismo. 
     Tirava-se, portanto, da cruz, o Cristo mutilado, posto no madeiro sagrado, revela Cony, por pintores e escultores renascentistas.
      Concordo plenamente. Mas é tema, assunto, para outra crônica. De repente na próxima Semana Santa.

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     Ainda ligado no assassinato do facínora Kadafi, queria aproveitar o embalo para dizer o seguinte: sempre que assisto a execução sumária de um cidadão, ou sua condenação à pena de morte, lembro-me da lição de Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria (1738-17940.
          Abro um parêntese. Os estudantes de Direito do meu tempo (faço este ano 50 de formado) conheciam Cesare Beccaria como conheciam ídolos da MPB ou do futebol.
     Não sei se hoje os nossos acadêmicos de Direito se arriscam a emitir uma opinião sobre esse ilustre Mestre milanês que, no século 18, com a publicação de um pequenino livro, pregou e defendeu a humanização do Direito Penal. Fecho parêntese.

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     Relendo o seu livro, também conhecido como "o pequeno grande livro" - Dei Delitti e dele Pene - Dos Delitos e das Penas - cada vez mais me convenço de que Beccaria, defendendo "a proporcionalidade das penas aos delitos..." foi convincente ao condenar a pena capital.

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     Não adianta, pois, matar ditadores canalhas como Kadafi e Saddam, ao arrepio da Lei.
     Os romanos ensinavam:  "Fiat justitia ne pereat mundus", ou seja, "Faça-se justiça para que o mundo não pereça": sim, mas respeitando-se a Lei.

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     Avisa-me a folhinha, estrategicamente pendura da parede do meu gabinete de trabalho: 2 de novembro.
     Que o Dia de Finados não seja, apenas, um dia de dor. Seja um dia de saudades  e de esperança num possível reencontro...

     

      
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 31/10/2011
Reeditado em 31/10/2011
Código do texto: T3308648