Duas Lembranças

O circo estava alegre e iluminado. Muita gente já tinha entrado e ainda havia uma grande fila esperando para comprar os ingressos.

Éramos, quase, os últimos. Mesmo assim, ainda ocupamos lugares nas poltronas (banquinhos de madeira, que tinham as pernas em X), de onde podíamos ver, de perto, os trabalhos dos circenses.

A alegria era geral, percebia-se pela inquietação das crianças e ansiedade dos adultos. Eu, também, me sentia feliz, pois ia assistir a um circo pela primeira vez. Lembro-me bem, quando o palhaço andava, pelas ruas, anunciando os espetáculos:

_ Hoje, tem espetáculo!

E a meninada, que o acompanhava, respondia:

_ Tem, sim senhor!

_ Ás oito horas da noite!

_ Tem, sim senhor!

_ O palhaço, o que é?

_ É ladrão de mulher!

Dava-me vontade de estar no meio daquela garotada feliz, mas... Mulheres não podiam acompanhar palhaços na rua.

Naquele dia, à tarde, o palhaço tinha pernas de pau, bastante altas. Usava uma bonita roupa estampada, um grande cone na cabeça e uma gravata vermelha que lhe caía quase aos joelhos. Anunciava o espetáculo através de um alto-falante que levava em uma das mãos. Fora o suficiente para minha mãe ganhar o meu abraço carinhoso e logo em seguida, ouvir o pedido, uma inocente chantagem:

_ Mãe, vamos ao circo, hoje?... Vamos, mãe!

Talvez à custa de algum sacrifício, naquela noite, estávamos ali, em frente ao picadeiro, para a minha estréia como espectadora: Meu pai, minha mãe, minha tia e eu. Meu pai usava um terno branco; nós, outras, os melhores vestidos.

Eram quase oito horas. Meus olhos, atônitos, percorriam todos os recantos da empanada, desde os mais altos de onde pendiam os trapézios, aos mais escondidos por onde passavam de forma clandestina, os meninos que não tinham ingresso. As arquibancadas estavam lotadas. Os camelôs aproveitavam para movimentar seu pequeno comércio de balas e chocolates, tentação para os olhos de uma criança.

Enfim, oito horas. Começou o espetáculo com a entrada de um palhaço saudando a plateia:

_ Respeitável público!

E sob aplausos, foram apresentados números variados de arte: trapézios, equilibrismo, mágicas, danças e as brincadeiras dos palhaços.

De repente, senti que um dos artistas despertara minha atenção. Em cima de uma mesa, estava um menino moreno-claro e magrinho, aparentando uns dez anos de idade, mais ou menos, equilibrando-se em uma tábua sobre um rolo de madeira. Vestia um calção de cetim verde, uma blusa branca de mangas compridas e fofas; tinha uma faixa larga e vermelha, à cintura e um gorro vermelho na cabeça; calçava fanabôs (tênis) brancos. O que mais me encantava, porém, era o ritmo e o equilíbrio que desempenhava, com desenvoltura, ao som do “Mambo na Espanha”. Meu coração batia... batia... com medo que aquele menino caísse. Não, ele não ia cair. Era um artista! E aquele ritmo... Aquela música... Nunca ouvira coisa tão bonita! De repente tive vontade de sair dançando, de subir naquela mesa, segurar um lado da minha saia, fazer movimentos ondulantes e sapatear. Aquilo entrava no meu sangue como uma corrente elétrica, produzindo ondas sonoras e faíscas coruscantes. Contava eu, apenas sete anos, mas a música já fazia parte da minha vida, como herança genética paterna, e a dança como herança materna. Pus-me de pé sobre a cadeira e dancei até o menino equilibrista terminar o seu trabalho artístico.

Em seqüência, outros números, assaz importantes, foram apresentados com técnica e arte, dando uma mostra de profissionalismo. Aliás, tratava-se de um elenco digno de louvor, necessitando de melhor equipamento de trabalho, pois a empanada era velha e estava cheia de buracos.

Mas... O menino iria se apresentar novamente? Perguntava-me com ansiedade.

Uma pesada chuva veio inquietar as pessoas que se levantavam e saíam dos lugares, molhadas pelos respingos que caíam do teto. Minha tia procurava me proteger, cobrindo-me com uma echarpe. Relâmpagos e trovões assustadores apavoravam-me. Diante da situação caótica, resolveram dar uma pausa na apresentação dos trabalhos. O palhaço falava, através de um megafone, para as pessoas não sairem, que o circo iria continuar. Alegrei-me, um pouco, com a esperança de ver o menino artista novamente. Minha mãe comentava sobre as maravilhosas bailarinas e trapezistas. Meu pai ria das piadas dos palhaços. Minha tia perguntou-me de que tinha gostado. Com toda a convicção de uma garotinha de sete anos, convicção que projetou em minha memória aquela imagem, até hoje, cada vez que vejo um Circo em qualquer circunstância ou que escuto a música contagiante do mambo, que se tornou o fundo musical da minha existência, respondi:

_ Do menino que dançou na tábua, que estava em cima do rolo, que estava em cima da mesa.

Aos poucos, a chuva foi diminuindo. Meu pai não quis esperar e depois que ele decidia, não voltava atrás. Ao deixar o circo, ouvi soarem as primeiras notas do Mambo na Espanha. Seria o menino novamente?

As ruas encharcadas molhavam nossos sapatos. O terno branco de meu pai ficou sujo de lama. Minha mãe e minha tia resolveram tirar os sapatos, pois nossa casa não ficava longe. Meu pai pôs-me no braço e conduziu-me até em casa. Foi essa a única vez que tive meu pai bem próximo a mim. Isso me deixou muito feliz e jamais esqueci esse momento.

***

Maria de Jesus Fortaleza, 12/10/2011.

Maria de Jesus
Enviado por Maria de Jesus em 12/10/2011
Reeditado em 03/11/2011
Código do texto: T3272288
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