O bom exemplo do burro

     Diga-se, pois, a verdade: animais abandonados por seus donos tomaram conta de Salvador! 
     É possível vê-los, diariamente, comendo a grama dos maltratados jardins públicos; e, de repente, pousando, sem serem molestados, ao lado de uma igreja centenária ou de um prédio que conta um momento relevante desta cidade, que se diz histórica.
     Mas vamos direto ao assunto.
     Passava eu, noite dessas, a bordo do meu Sandero, por uma avenida importante e movimentada de Salvador. 
     Meu relógio marcava pouco mais de 23 horas.
     Na minha, ouvia músicas gravadas num pendrive, presente de uma amiga, e aí veio o susto: sem me pedir licença, cabisbaixo, sonolento, um burro atravessou a pista, e segui, vagaroso, a procura da marquise mais próxima para passar a noite, que era de estrelas, mas muito fria. 
     Meu primeiro impulso foi xingar o burro e a égua que o havia parido. 
     Contive-me. Podia ter sido pior. Fora, apenas, um susto. O muar seria o menos culpado na tragédia que podia ter me vitimado, em plana via pública.
     O verdadeiro culpado - e o leitor já descobriu - seria o seu dono, com certeza um sujeito ingrato e perverso.
     Pensei comigo: esse burro terá o mesmo destino dos nossos queridos jumentos, ou seja, será criminosamente abandonado.
     Desde algum tempo, nossos jegues veem sendo substituídos por motos gigantes, que passam pelos campos tirando o sossego das codornas e botando pra correr os auriverdes camaleões.
     O meu repentino e perigoso encontro com o burro soteropolitano, na calada da noite, levou-me a esta reflexão: antes um burro do que um meliante, sempre disposto a levar o carro e o dono do carro, um tipo de assalto que se tornou comum na capital baiana, há pouco uma cidade alegre e solidária, fosse dia, fosse noite.
     O asno notívago, que tanto me assustou, me fez lembrar também o burro da crônica de Machado de Assis, que li, faz muito tempo.
     O Bruxo do Cosme Velho conta, que passando pela Praça Quinze, viu um "burro deitado", chamando a atenção do pessoal.
     E prossegue Machado: "Os ossos furavam-lhe a pele, os olhos meio mortos fechavam-se de quando em quando. O infeliz cabeceava, mas tão frouxamente, que parecia está próximo do fim."
     Para Machado, e ele confessa sem rodeios, o burro "que tinha no olhar a expressão dos meditativos", naquele instante fazia "exame de consciência".
     Se dizendo outro Champollion, maior até do que aquele que decifrou os hieróglifos egípcios, Machado traduziu o que julgou ir na cabeça do animal.
     Oh! Vale a pena transcrever o desabafo do burrico da Praça Quinze. Releve-me o leitor minha insistência em fazê-lo na íntegra, posto que, em pedaços, ele perderia a graça. 
     E eu não teria como justificar uma crônica falando de burros.
     Assim pensava o burro, segundo o autor de Ressurreição e Helena.

     " Por mais que vasculhe a consciência, não acho pecado que mereça remorso. 
     Não furtei, não menti, não matei, não caluniei, não ofendi nenhuma pessoa.
     Em toda a minha vida, se dei três couces, foi o mais, e isso mesmo antes de haver aprendido maneiras de cidade e de saber o destino do verdadeiro burro, que é apanhar e calar.
     Quanto ao zurro, usei dele como linguagem. Ultimamente é que percebi que me não entendiam, e continuei a zurrar por ser costume velho, não com ideia de agravar ninguém.
     Nunca dei com um homem no chão. 
     Quando passei do tílburi ao bonde, houve algumas vezes homem morto ou pisado na rua, mas a prova de que a culpa não era minha, é que nunca segui o cocheiro na fuga; deixava-me estar aguardando a autoridade.
     Passando a ordem mais elevada de ações, não acho em mim a menor lembrança de haver pensado sequer na perturbação da paz pública. 
     Além de ser a minha índole contrária a arruaças, a própria reflexão me diz que, não havendo nenhuma revolução declarado os direitos do burro, mais direitos não existem.
     Nenhum golpe de Estado foi dado em favor dele; nenhuma coroa os obrigou.
     Monarquia, democracia, oligarquia, nenhuma forma de governo teve em conta os interesses da minha espécie. 
     Qualquer que seja o regime, ronca o pau. O pau é a minha instituição, um pouco temperada pela teima, que é, em resumo, o meu único defeito. 
     Quando não teimava, mordia o freio, dando assim um bonito exemplo de submissão e conformidade.
     Nunca perguntei por sóis nem chuvas; bastava sentir o freguês no tílburi ou o apito do bonde, para sair logo. 
     Até aqui os males que não fiz; vejamos os bens que pratiquei.
     A mais de uma aventura amorosa terei servido, levando depressa o tílburi e o namorado à casa da namorada - ou simplesmente empacando em lugar onde o moço que ia no bonde podia mirar a moça que estava na janela. 
     Não poucos devedores terei conduzido para longe de um credor importuno. 
     Ensinei filosofia a muita gente, esta filosofia que consiste na gravidade do porte e na quietação dos sentidos.
     Quando algum homem, desses que chamam patuscos, queria fazer rir os amigos, fui sempre em auxílio dele, deixando que me desse tapas e punhadas na cara. Enfim..."

     Quanta ironia nesse texto!
     A autocrítica do burro do Bruxo devia ser mais divulgada.     
     Conhecendo-a, é provável que muita gente evolua, e procure ser como o burrinho "pensador" da crônica do  Machado. 
     Nunca é tarde.
     
     
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 05/09/2011
Reeditado em 05/09/2011
Código do texto: T3202337