Estrelas Mudam de Lugar

Realmente, ao chegarmos a certa idade verificamos que as estrelas estão lá onde sempre estiveram.

Lembro-me da minha “estreia” entre os que começam a entender alguma coisa da vida.

Lá estava eu, na velha Rua Carlos de Campos, onde existiam grandes espaços vazios, e eu olhava o céu, escuro mas cheio de estrelas, e acompanhava com aquele olhar de 6 anos procurando definir aonde aquela imensidão acabava, e via que era ali onde hoje é o bairro do São Bernardo, e acreditava que se eu fosse caminhando naquela direção, eu poderia falar com alguma estrela.

Certa noite eu estava a contemplar o céu, escolhendo qual seria a minha protetora, deveria ser o mês de abril quando as noites parecem mais escuras e as estrelas brilham mais, quando duas mãos me agarraram e alguém me perguntou:

“O que você está fazendo?”

E eu disse com autoridade:

“Estou olhando o movimento”.

Eu tinha 6 anos e estava a 20 metros de minha casa, ao lado da casa do senhor Halvecio Pinarelli, e aquele que foi me buscar era meu primo Eduardo, filho do Tio Santo e da Tia Catina, que morava em Espírito Santo do Pinhal, bem mais velho do que eu.

Fomos para casa e minha mãe disse:

“O Laércio gosta de estudar as estrelas.”

Mas ao longo da vida sempre acreditei que algumas estrelas nos escolhem para nos proteger.

No amor, depois de vários namoros, com o máximo respeito, aos 22 anos vi que a minha protetora estava de folga, pois nenhuma das namoradas me impressionava. Parecia que lhes faltava luz.

Mas num belo dia, uma moça que morava na minha rua passou por mim e me cumprimentou. Eu disse ao colega que estava ao meu lado:

“No dia em que essa moça olhar para mim eu caso com ela.”

Porque eu vi ao lado dela uma esteira de luz. Ali percebi que a minha estrela protetora estava trabalhando.

Passados alguns dias ao esperar o coletivo para o centro da cidade, ela estava ao meu lado e perguntou:

“É verdade o que você disse naquele dia?”

Eu respondi:

“È verdade.”

Mas intimamente eu estava quase arrependido de ter falado aquilo, vendo-a de perto. Vi que minha protetora só poderia estar brincando, pois aquela moça que estava ali não era para os meus sonhos. Ela tinha tudo que as outras namoradas não tinham: era bonita, irradiava um perfume suave. Tinha uns dentes e um olhar que só as deusas têm, seu porte era elegante. Parecia uma princesa. Transmitia luz ao falar com humildade e simpatia. Então, criando coragem, eu lhe falei:

“É claro que você não dará confiança para um humilde foguista da Cia Mogiana. O que poderei lhe oferecer além do meu amor?”

Ai ela me olhou com grande doçura e falou.

“Eu nada mais espero de você a não ser amor. E quanto a você ser foguista não importa, pois o meu pai foi maquinista da Cia Mogiana de Estradas de Ferro. E já que estamos conversando sério, você sabe que eu não tenho mais pai nem mãe. O nosso namoro não pode ser muito longo. Eu moro junto com a minha Irmã e temos uma casa completa.”

Naquele dia a minha estrela exagerou. A minha Lucy talvez merecesse mais do que eu podia oferecer. Mais algum tempo e nos casamos e fomos felizes. No dia do casamento que aconteceu na Igreja de Santa Catarina, eu já estava no altar ao lado do Padre Benedito Luiz Pessoto quando os primeiros acordes da marcha nupcial se fizeram ouvir.

Comecei a tremer quando de relance vi aquela deusa caminhando para o altar. Ai eu olhei para frente e vi uma grande estrela que estava numa cortina perto do altar, que pareceu sorrir para mim.

Realmente, depois de casado eu devia me comportar muito bem para merecer o que aquela deusa me proporcionava.

O meu comportamento já era razoável. Eu não bebia, não fumava. Tinha um vicio que não podia ser corrigido: amor.

Também na minha carreira amava o meu trabalho de foguista nas locomotivas da Cia Mogiana de Estradas de Ferro. E sabia que eu tinha de dividir ao longo da vida esse amor com a minha família, que ainda não dava sinais de aumentar.

Certa noite, em que eu tirava repouso em Casa Branca, estávamos reunidos vários foguistas e maquinistas, conversando, quando eu vi uma estrela mudando de lugar. Então, o meu maquinista, o senhor Mário Miguel, que também havia visto aquela estrela me disse:

“Faça um pedido que a estrela irá atendê-lo.”

Ai eu pedi a estrela para nos ajudar a ter um filho. E fui dormir para retornar a Campinas. Era a época das locomotivas a vapor. Mas para mim não havia cansaço pois era tudo o que eu queria na vida.

Chegando em casa a minha esposa veio me receber como sempre o fazia. Com um simples toque das suas mãos toda a canseira desaparecia. Mas naquele dia parecia que toda a luz do mundo estava ao seu redor. E a Lucy, beijando-me na testa, disse:

“Ontem eu fui ao médico e ele me disse que estou grávida e que está tudo bem.”

Depois de quase sufocá-la com meus beijos e abraços, pensei:

Estrelas mudam de lugar. Chegam mais perto só pra ver.

E pedi àquela estrela que desse à minha deusa a melhor gravidez possível. E assim foi sem desejos quase impossíveis de serem atendidos. Somente ali pelo sétimo mês eu observei que ela olhava com muito carinho para uma propaganda, na revista Grande Hotel, de um vinho nacional licoroso e branco.

Fui até o bar da esquina e lá estava o vinho. Comprei uma garrafa e chegando em casa a abri. Peguei uma taça e coloquei um pouco de vinho e ofereci ao meu amor. Foi quando ela me disse:

“Como você adivinhou que eu queria um pouco de vinho?”

Eu então lhe disse que fora uma intuição. E eu lhe disse também:

“Pode tomar este vinho porque não irá afetar a gravidez. Pois segundo Dona Leonor, a parteira que atendia nas casas da vizinhança, mulher grávida pode beber e comer de tudo que nada faz mal, pois está num estado de graças dos céus.”

Depois de alguns meses nasceu o Luciano. Quando ligaram para a casa do meu pai dizendo que tudo havia corrido bem e era um menino forte e bonito, eu, antes de ir ver meu filho na maternidade fui, de trem, a São Paulo. Lá fui até a Igreja de Santa Isabel, que fica na Vila Carrão, agradecer à Santa Isabel pela proteção à minha esposa Lucy e ao meu filho Luciano Fernando.

Cumprida a promessa, voltei e fui abraçar os meus tesouros.

Como as estrelas mudam de lugar, eu também vou voltar ao primo Eduardo, que foi me buscar naquele dia, quando eu contava 11 anos. Segundo palavras dele, num dia em que eles já moravam em Jundiaí e eu havia ido com meu Pai à casa dos meus tios Santo e Catina, o Eduardo me confessou:

“Naquele dia, se sua mãe não chegasse a tempo, hoje você não teria 11 anos, pois quando você ainda era nenê, eu estava tomando conta de você, mas você chorava tanto que eu o peguei e ia arremessa-lo contra a parede. Assim acabaria aquele choro.”

Depois de alguns anos, o Eduardo, que tinha um físico privilegiado, era foguista na Cia Santos a Jundiaí de Estradas de Ferro, aprendeu a beber de tudo, e quando ficava alcoolizado três homens não o detinham. Ele se casou mas o vício estragou sua vida. Eduardo morreu ainda novo.

Ai eu me conscientizei de que havia escapado de uma tragédia infantil. Espero que uma estrela tenha arrumado um lugarzinho bom no céu para o Eduardo.

Mas falando em estrelas me lembrei de uma passagem que aconteceu quando eu era maquinista dos trens de carga e de passageiros, da Cia Mogiana de Estradas de Ferro e depois FEPASA.

Era véspera de Natal e o meu trem chegou a Ribeirão Preto às 14:00. Como era comum nesses dias de festas, diminuía muito as escalas dos trens e tripulações.

Como eu que era de Campinas, éramos autorizados a voltar para casa embarcados nos trens de passageiros, e eu contava com essa possibilidade para passar o Natal com meus familiares.

Porém, ao me apresentar na escala, o senhor Silva, que era o escalante, me disse:

“Eu sinto muito. Tenho ordens de dispensar 5 tripulações de Campinas. Mas você eu tenho de manter aqui para o caso de um imprevisto, pelo seu conhecimento e capacidade com qualquer trem, em qualquer linha.”

Eu então aceitei, como sempre, as ordens do escalante e fui tratar de repousar. Repouso que era feito nos alojamentos da ferrovia, perto da estação.

Fui avisado que a minha escala oficial seria no dia de Natal às 15:00, ou seja, no dia seguinte. Depois de repousar algumas horas, resolvi ir até o centro da cidade afim de providenciar algo para a nossa alimentação, já que nós mesmos fazíamos nossa comida lá em Ribeirão Preto. Eram 18:30 e eu fui até a Praça XV de Novembro.

Lá comprei um cachorro quente, de um vendedor já meu conhecido. Enquanto o dono da barraquinha fazia o meu lanche eu pedi mais um, pois ali pertinho, num banco da praça observei um senhor que se preparava para passar a noite ali. Com vários jornais ele havia forrado o banco de granito, e com um cobertor, já bastante gasto, que seria usado para cobri-lo.

Nesse momento eu peguei um dos meus lanches e fui levar para ele, que me agradeceu com um olhar de quem já havia tido uma vida melhor. O senhor que fazia os lanches me abraçou e disse:

“Belo gesto que você teve. Esse senhor não pede nada a ninguém, mas é sempre triste. Mais tarde quando a minha esposa vier trazer minha janta, eu sempre reparto com ele”.

Ali pertinho, um roliço Papai Noel, rodeado de crianças, cantava músicas natalinas.

Então, olhando para a minha estrela, pedi que ela olhasse por aquele senhor que não tinha ninguém, nem era filho de Papai Noel.

Quando eu ia pegar o coletivo que me levaria a meu alojamento, mais alguém a minha estrela colocou no meu caminho. Era um garoto de 11 anos que tinha várias latas dentro de um saco branco, e outra lata nas mãos. Antes de subirmos no coletivo, perto da estação, ele me pediu:

“O senhor me ajudaria a descer? Pois nestas latas eu trago comida que eu sempre pego nos hotéis aqui da Praça XV.”

Antes que eu pensasse algo errado ele me disse:

“Eu levo comida para casa. Tenho 4 irmãos e eu sou o mais velho. Não tenho pai e minha mãe é doente”.

E olhando para mim com grande responsabilidade disse:

“Hoje é véspera de Natal. Como eu gostaria de estar arrumando a nossa árvore e vendo minha mãe fazendo coisas gostosas para passarmos a noite. Mas não pense que eu sou triste por não ter o que muitas crianças têm. Eu agradeço a Deus por tudo aquilo que tenho e sonho com dias melhores.”

Ao descermos do ônibus nos despedimos emocionados. Eu lhe dei algum dinheiro para que ele comprasse uma rosca com creme para levar para sua casa, e lhe disse:

“Continue sempre com esperanças que o Mestre Jesus lhe dará tudo de que você precisa.”

Então, olhando o céu, pedi a minha estrela, se não fosse pedir demais, que olhasse também por aquele garoto.

Laércio
Enviado por Laércio em 26/07/2011
Código do texto: T3120202