Sobre Kafka, Sartre e "as náuseas"

Leiam este pequeno conto de Franz Kafka:

“O pião

Um filósofo costumava circular onde brincavam crianças. E se via um menino que tinha um pião já ficava à espreita. Mal o pião começava a rodar, o filósofo o perseguia com a intenção de agarrá-lo. Não o preocupava que as crianças fizessem o maior barulho e tentassem impedi-lo de entrar na brincadeira; se ele pegava o pião enquanto este ainda irava, ficava feliz, mas só por um instante, depois atirava-o ao chão e ia embora. Na verdade, acreditava que o conhecimento de qualquer insignificância, por exemplo, o de um pião que girava, era suficiente ao conhecimento do geral. Por isso não se ocupava dos grandes problemas – era algo que lhe parecia antieconômico. Se a menor de todas as ninharias fosse realmente conhecida, então tudo estava conhecido; sendo assim só se ocupava do pião rodando. E sempre que se realizavam preparativos para fazer o pião girar, ele tinha esperança de que agora ia conseguir; e se o pião girava, a esperança se transformava em certeza enquanto corria até perder o fôlego atrás dele. Mas quando depois retinha na mão o estúpido pedaço de madeira, ele se sentia mal e a gritaria das crianças – que ele até então não havia escutado e agora de repente penetrava nos seus ouvidos – afugentava-o dali e ele cambaleava como um pião lançado com um golpe sem jeito da fieira.” (KAFKA, Franz. Descrição de uma luta. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.)

Agora vejam este trecho do romance “A Náusea”, de Jean Paul Sartre:

“Sábado, uns garotos estavam a atirar pedrinhas ao mar para fazê-las saltar de ricochete, e pretendi atirar uma como eles. Nesse momento detive-me, deixei cair a pedra e fui-me embora. Devia ir com uns ares de transviado, com certeza, porque os garotos desataram a rir quando voltei as costas.

Isto, quanto ao exterior. O que se passou em mim não deixou traços claros. Havia qualquer coisa que vi e que me repugnou, mas já não sei se estava a olhar para o mar ou para a pedra. A pedra era chata; dum lado estava inteiramente seca, úmida e enlodada do outro. Tinha-a agarrado pelas beiras, com os dedos muito afastados, para não me sujar.” (Jean Paul Sartre, “A Náusea”)

Havia lido há muitos anos o romance de Sartre e hoje, lendo o conto de Kafka citado acima, tive um momento proustiano, meu pensamento foi logo desviado para aquelas linhas que estavam no fundo da minha memória, o trecho de “A Náusea”. Fiquei desconfiado se estava ou não certo quanto à impressionante semelhança (evidentemente já sabia que Sartre havia lido Kafka), fui à estante, apanhei o romance e folheei-o rapidamente: estava lá o trecho que acabei de citar, uma das cenas que eu mais havia gostado no romance (mais até que a tão celebrada cena da árvore sob a qual Roquentin “descobre a contingência”). Uma dessas experiências estéticas maravilhosas que só a grande arte nos possibilita. Seria a náusea de Antoine Roquentin a mesma do filósofo de “O Pião”? Talvez sim, talvez a cena de Sartre seja até uma referência ao conto de Kafka. O que sei é que essa “náusea” paira grandiosa sobre o homem moderno, e não parece que irá abandoná-lo tão cedo.