Natal sem fome

Estava aquele sol escaldante. Aquele mesmo sol que irritava, no início do século 20, o jovem Lima Barreto. Tinha que deixar a filha na escola. Irritava-se agora com a rotina do caminho. A filha cantarolava e ele resmungava. Ao chegar na portaria da escola, depara-se com um grande bau na entrada. Uma placa descrevia a utilidade daquele bau. "Colabore para o Natal sem fome". Uma senhora, com uma face hollywoodiana, sorria para todos esperando as doações. Doações certas, sem dúvida. Estamos no mês santo, época que nascera nosso salvador. Nessa época todos são afetuosos. Todos.

Na televisão ligada no hall de entrada da escola, um noticiário noticiava que os assaltos a transeuntes no centro da cidade tinham aumentado em oito por cento, em relação a mesma época do ano passado. Um especialista dizia que isso era devido ao décimo-terceiro do trabalhador. Esse maldito décimo-terceiro! Esse mal econômico nas contas públicas!

A senhora do bau disse a ele:

- Boa tarde, senhor! Tudo bem? Vamos colaborar com o Natal sem fome? Contribua com alimentos, roupas, brinquedos e dinheiro! Qualquer coisa é sempre bem vinda às pessoas necessitadas...

- Não. Respondeu da forma mais seca possível. Não. Se depender de mim, esse natal vai ser um natal com fome. Êta, povinho pra sentir fome!

- Que isso, senhor!? Por que tanto ódio? Temos que ajudar quem está precisando!

- Ajudar? E quem me ajuda? Quem me ajuda a pagar o aluguel todo início de mês? Quem me ajuda a pagar a conta de luz, de gás, de condomínio, da escola? Quem me ajuda a pagar o ônibus, as compras no mercado, a feira?

Como uma metralhadora desferia toda a amargura naquela nobre senhora. Um senhor veio em socorro à senhora atordoada.

- Nunca vi tanta grosseria! Isso é uma vergonha, negar ajuda a quem necessita! O senhor nem respeita as crianças a sua volta!

- Como? Ajudar? Eu não ajudo? O senhor está muito enganado... Eu pago durante o ano todo impostos, taxas, tributos, etc. Impostos que deveriam ser destinados aos necessitados. Não esses necessitados que vocês todo ano sustentam com essa inepta caridade! Mas aqueles necessitados de trabalho! Ai fica essa malta de vagabundos fazendo fila pra receber doações. Faça-me o favor! Eu além de pagar toda essa carga tributária e não ter direito a nada, ainda tenho que promover o natal sem fome?

Agora a metralhadora já chamava a atenção de mais insatisfeitos. Um grupo já gritava concordando com ele. A senhora do bau olhava para aquelas doações com desconfiança. O senhor que tentara ajudar a senhora, mantinha sua doação perto de si. Os vadios que esperavam no estacionamento da escola as doações se frustravam com a vitória repentina dele. O bau começara a tomar um outro sentido. Sentido de insulto. Sim, aquele bau era um insulto. Um grupo de jovens começou a rir e gritavam como loucos. Um segurança pediu ordem e em troca levou uma cotovelada. Agora ninguém mais conseguia segurar aquela multidão de insatisfeitos. Gritavam:

- Vamos quebrar esse bau!

A malta de vadios invadiu o hall e lançou-se como animal em cima das doações. As crianças gritavam com uma alegria alucinada. Os jovens davam pontapés nos vadios, nos senhores, nas senhoras, na nobre senhora. Os sacos de alimentos se partiam e corria pelo chão arroz, feijão, macarrão.

Ele conseguira escapar da multidão. Pegou o elevador e deixou sua filha na sala de aula com a professora. Na volta, enquanto esperava pelo elevador, uma senhora lhe dissera:

- Ta uma confusão lá embaixo.

- É, eu sei, deve ser esse calor medonho.

Rodiney da Silva
Enviado por Rodiney da Silva em 30/11/2006
Código do texto: T306091
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