Só gostamos daquilo que é espelho

Não existe opção para mim quando se trata de gostar ou não das letras. Assim que vejo um livro, sinto-me atraído fortemente. Uma livraria? É impossível resisti-la. Isso acontece desde pequeno. Gosto da encadernação, da capa e da contracapa, gosto do cheiro de livros novos, ah, como gosto! Literatura, Filosofia, História do Brasil e Geral, Política, Antropologia, etc.

Dizem que gosto de ler, mas nego veementemente. Sabe por quê? Porque quem gosta de ler, tem que gostar de ler tudo. Mas eu não gosto de ler sobre negócios, informática, fofocas, jornais, moda, culinária, medicina, psicologia, psicanálise, etc. Se existir alguém que leia tudo e goste disso, esse realmente gosta de ler. Mas como o ser humano é plural e apenas busca aquilo que o agrada, acredito que jamais haverá alguém que goste de ler. Ao contrário, gostamos daquilo que afirma nossa postura diante do mundo, ou seja, gostamos de ler aquilo que nos satisfaz. Por exemplo, gosto de Santo Agostinho não por que ele escreveu verdades absolutas, mas por que escreveu minhas verdades. E mesmo se ele não tivesse a pretensão de escrever aquilo como eu entendo, eu sempre estarei preparado para colocar como soberana minha interpretação em detrimento do que realmente o filósofo cristão tinha em mente.

Em outras palavras, não gosto do que Agostinho escreveu, mas gosto de como entendo o que ele escreveu. Pois quando lemos transformamos o livro em espelho, de maneira que ele só consegue refletir nossa imagem. E quando não conseguimos ver refletida nossa imagem nalgum livro, o julgamos ideológico, mentiroso, panfletário e, por fim, quebramos o espelho.

Uma característica que segue e sempre seguirá a natureza humana é o narcisismo. O próprio Agostinho também criou seus espelhos. Quando ele lia Platão, ele o lia como um espelho e posso imaginar suas lágrimas jorrando quando deparava-se despido diante de um relato tão profundo sobre sua própria pessoa. E assim, indefinidamente, vamos criando nossos espelhos. Platão descrevendo Sócrates, Aristóteles refutando Platão, Agostinho recriando Platão, Tomas de Aquino descobrindo um Aristóteles cristão, Hume criando o espelho da experiência, Descartes descrevendo o homem e Deus, e colocando-os num método, Kant negando tudo e recomeçando seu próprio espelho, Nietzsche negando também todos e a si mesmo, e escondendo-se dentro de seu próprio espelho: espelho da loucura, Hegel criando espelhos que negam-se na História, Marx, oportunamente, embaralha os espelhos e descarta ingenuamente, até chegar em Wittgenstein e denunciar esse mosaico de espelhos que não constrói e nem destrói, mas são apenas brincadeiras controladas por mentes cheias de fantasias.

Em resumo, só gostamos daquilo que é espelho, daquilo que nos reflete e que nos agrada. Ninguém pode ver o mundo como eu vejo, porque o mundo que eu vejo é apenas meu.

Rodiney da Silva
Enviado por Rodiney da Silva em 28/11/2006
Código do texto: T303580
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