Para o Caso de Não Sermos Eternos.

Não desejo ser plantada em terreno vindouro como uma semente de perenidade, especial e necessária. Somos finitos enquanto corpos frágeis, envelhecendo no esvair dos grãos de areia que escorrem pelo funil da ampulheta universal.

E quando eu me for, quero ser lembrada pelas palavras deitadas que escrevi com a mão esquerda. As primeiras frases de todos os textos jamais foram refeitas, e dos rabiscos de olhos e bocas desenhados nas carteiras das salas de aula que frequentei, lembre-se de que eram todos iguais. Rostos sem cabeça, porque eu nunca entendi a simetria das orelhas.

Não desfrutei das horas preguiçosas como deveria, quando as tive todos os dias em abundância e sem o menor sentimento de culpa por não fazer nada enquanto o resto do mundo trabalhava. Mas quando a consciência de que eu deveria fazer algo de útil comigo mesma chegou, veio também o insaciável desejo de querer mais. Hoje, garimpo segundos de preguiça em todos os lugares, torcendo as horas como toalhas molhadas na esperança de um respingo de tempo ocioso.

Lembre-se de mim como um tímido sopro de brisa fria a roçar as bochechas em um final de tarde iluminado pelos raios de sol que, de tão teimosos que são, conseguem transpor a barreira das nuvens outonais para iluminar o crepúsculo de um dia acinzentado. Não sou arrebatadora como as rajadas de vento que levantam as saias e bagunçam nossos cabelos, mas apenas um acarinhar despretensioso que eriça os pelos da nuca e ensaia um arrepio que não acontece nunca.

Iremos todos embora, fatalmente. A olhos vistos, com plateia, na escuridão taciturna, com muita pompa e circunstância, ou simplesmente nada. Não seremos mais do que lembranças propagadas em rodas de conversa fiada, nas fotos dos álbuns eletrônicos, nos porquês de uma morte prematura, no lamento do cachorro que envelheceu uma vida em alguns dias, depois que perdeu o dono.

Quem nos perde sempre acha que vai ouvir nossa voz novamente, ecoando pelo corredor da casa para aquecer as paredes descascadas e mortas. Não se desfaça da poltrona de estofamento colorido que eu ainda vou comprar, mesmo que as cores não combinem com mais nada. Tantas vezes me encolherei calada, segurando as pernas com os braços firmes enquanto o resto do corpo se acomoda satisfeito.

Você não vai notar minha ausência tanto assim. Não vai correr o risco de se deparar com uma roupa esquecida no banheiro ou com chinelos jogados sob a cama. Quanto aos fios de cabelo, esses ficarão aqui e ali, espalhados pelos lençóis usados e nas presilhas esquecidas nos compartimentos do seu carro. Tente se lembrar de trocar as fronhas dos travesseiros sempre que o suor de uma noite mal dormida encharcá-las de pesar.

Pelas ruas meu rosto estará em muitos anônimos e você se confundirá com o que antes parecia ser impossível. Enquanto dirige, tentando seguir com os olhos todas as ilusões de que ainda estou por aqui, não se esqueça de ligar o rádio, não se esqueça de cantar pra mim. Cante para mim todos os sucessos dos anos oitenta, mesmo que naquela época não passássemos de criaturas procumbentes vivenciando a primeira vez de quase tudo.

Não pedirei que se lembre dos shows de rock, porque não compartilhamos música como deveríamos. Canto por que estou feliz, estou feliz porque canto. Não sei se a ordem da sentença altera o sentimento nesse caso, mas é o que você costuma dizer antes de se calar para me ouvir cantar. Orgulho-me das letras que sei de cor. Mas você jamais decorará um único verso corretamente, pelo simples fato de que prefere inventar as palavras para rir de sim mesmo.

Não sei rir de mim mesma, e tenho certeza de que você irá se lembrar disso. De como eu me irritava com suas críticas insistentes, de como você adorava dizer que eu tenho a cabeça grande e as pernas transparentes. Da minha vergonha em usar minissaia, do coturno preto que você detestava, mas não tinha coragem de assumir que me achava ridícula com ele.

Ainda não plantei uma árvore, mas rego diariamente a violeta comprada no restolho de domingo do mercado do Centro. Guarde os finais dos livros que escrevi em pensamento como se pudesse compreendê-los apenas porque me conheceu melhor do que ninguém mais. Guarde a semente da árvore que não plantei, como o filho que não tivemos, como o mundo em nossa casa, a eternidade disfarçada de sorrisos lerdos ao cair da tarde enquanto nos desmanchávamos em palavras doces a respeito do futuro que queríamos ter.

Guarde um pouco de mim em tudo o que há você.