AOS CÃES, ABRAM-SE AS PORTAS (EC)
- Padre! Que está fazendo com essa vassoura? Varri mal a Igreja?
- Espantando um cachorro. Estava fazendo xixi no altar. Quem deixou que ele entrasse, sacristão?
- A porta da Igreja está aberta.
- Então, feche-a.
- Mas, se fecharmos a porta os fiéis não poderão entrar. Domingo passado mesmo, o senhor disse que as portas da casa do senhor têm que estar sempre abertas... A toda hora.
- Tem razão. Prometi isso. Só que esse cachorro está sempre entrando aqui... A toda hora.... Podíamos deixá-la encostada. As pessoas empurram, entram e encostam novamente.
- A idéia é boa, mas da rua a porta vai parecer fechada e há fiéis preguiçosos que não se darão ao trabalho de vir conferir. Além disso, se a encostarmos, escurece muito e teremos que acender as luzes. O senhor mandou economizar, lembra-se?
- Temos que economizar... Temos que economizar... Precisamos de dinheiro para as Obras Sociais...
- E com esse calor, a igreja fica uma sauna. Algumas senhoras reclamam até com a porta aberta, imagine se a fecharmos.
- Podíamos abrir as janelas.
- O senhor mandou deixá-las fechadas, lembra? Desde que as pombas fizeram ninhos atrás do altar lateral.
- Lembro. Justo no altar de São Francisco. Peraí, sacristão... O senhor tem alguma idéia sobre como resolver isso ao invés de dar palpite. O senhor deixaria a porta aberta ou fechada?
- Isso não tem solução! Lá em casa temos o mesmo problema. Porta aberta ou fechada?
- Por qual motivo? Calor? Cachorros?
- Antes fosse, padre! Assaltos. Já assaltaram diversas casas na região. Antigamente a porta ficava escancarada para que os amigos entrassem. Depois começamos a encostá-la e os amigos sabiam que podiam entrar sem bater. Houve um tempo que trancávamos a porta e deixávamos a chave em algum lugar secreto. Debaixo do capacho, na floreira. Agora passamos a chave, cadeado e quando batem, esperamos insistir, espiamos pela janela, conferimos se é amigo mesmo e só aí abrimos.
- Não vou passar chave e cadeado na porta da Igreja.
- O senhor diz isso, porque não roubaram a Igreja ainda.
- O que tem para roubar nesta igreja? Uma paróquia pobre.
- O que tem para roubar lá em casa? Somos os pobres... E mal remediados
- Isso é um absurdo. Roubarem os pobres. A polícia tinha que prender quem rouba pobre e jogar a chave fora.
- Nossa, padre! Quanta revolta! Lembre-se que o senhor é defensor dos direitos humanos.
- Está certo! Está certo! Excedi-me. Acho que na próxima homilia vou falar sobre essas coisas.
- Sobre as portas?
- Sobre a liberdade. Que toda criatura de deus deveria ser livre...
- O senhor vai falar sobre a liberdade das criaturas? É isso?
- Vou.
- Então, finalmente poderei soltar o passarinho da gaiola da sacristia? O senhor precisa dar o exemplo.
- È apenas um canário. E está velhinho.
- Os ambientalistas não acham isso.
- Nem deve mais saber voar em liberdade.
- Verdade! Liberdade é igual a uma arte. A gente esquece se não pratica. Acostuma a ficar de porta fechada, olhando pela grade da janela. É ruim. O senhor, mais que ninguém, sabe o que é não ter liberdade. O senhor foi exilado político, não foi?
- Nem me lembre. Tempos ruins.
- As pessoas queriam voltar e o país estava com as portas fechadas, não é mesmo?
- Quase isso. A porta para voltar até seria aberta. Mas, fechar-se-ia quando entrassem... Sem saída de emergência.
- O senhor nunca teve vontade de vingar-se. Dá vontade, não dá não?
- Que dá, dá... Mas, temos que abrir nossos corações e extirpar o ódio... Abri-lo para que entrem coisas boas e saiam as más. Só assim abriremos as portas do céu. A fé remove montanhas e abre portas.
- De minha parte, rezo bastante para São Pedro. Ele é quem tem as chaves do Céu.
- Ora, meu filho! Isso é folclore. Cada um de nós abre sua própria porta. Basta fazermos o bem e nossa porta estará aberta.
- Não custa me garantir. Vai que a porta não é assim tão automática ou está em manutenção no dia em que eu chegar lá... Uma rezinha a mais, uma rezinha a menos não faz diferença.
- Não brinque com essas coisas.
- Nem contei para o senhor. Na semana passada aconteceu uma coisa engraçada. Perdi a bendita chave da porta da sacristia, que o senhor quer que fique fechada.
- Achou?
- Rezei para São Longuinho.
- Ah! Então era isso o barulho que escutei. Eram seus pulinhos. Foram muitos...
- Trinta e seis. Mas achei as chaves.
- Onde estavam?
- Esqueci em cima do altar de sabe quem?
- ??????????????
- De São Pedro.
- Você é capaz de cada coisa, hein, meu filho!
- Só faço o possível, padre!
- Nos distraímos com a conversa e o cachorro desapareceu. Deve ter saído.
- É mesmo. Exerceu livremente seu direito de ir e vir. Está na Constituição.
- Ora, não exagere. Circulação de cães não está na Constituição. Agora, confere em baixo dos bancos e vamos fechar a porta que já está escurecendo.
- Saiu mesmo. E o senhor nem precisou dar vassourada para espantá-lo. Economizou um pecadilho, hein!
- Veja lá como fala... Pensando bem, meu filho, seria muito melhor se pudéssemos deixar as portas sempre abertas. Elas nem deveriam existir. Quer me acompanhar num cálice de vinho.
- Claro!
- Apanhe uma garrafa nova na adega?
- Prá já...
- Espera... Leve a chave...
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Este texto faz parte do Exercício Literário Porta aberta..
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