INESQUECÍVEL

Viver: fazer-se notar ou deixar inesquecível?

Uma lorota bem contada encaixa na gente a possibilidade de ser além: insistirão em nosso nome por mais tempo. E a dignidade: flor de palmeira-brava – essa se conquista a prazo, é como um financiamento do caráter: verdade não se compra a vista.

Demorados os anos que nos falta, mas assim que o prazo nos vence, o maior inimigo da minha saudade serei quem não tive coragem: daí um balaio confuso de histórias cosidas no cinema, músicas que ninguém vê, um pouquinho de moléstia boa que pouca gente contraiu, e o desavisado tátil que não ouve: era a sua dança, sua, a dança, sua, que este continho não lê!

E nem lerá. Jamais ouvirá dizer, nem sentirá vontade: mesmo que soubesse.

A arquitetura do sorriso não é infalível nunca: e a saudade é uma cor que qualquer um vê. Certamente a sua única possibilidade é esquecer-me o meu retrato falido, aquele que nem o verniz pegou; a única possibilidade: o seu sorriso nunca, infalível, foi.

Ontem havia uma criança berrando aí em frente. O impaciente descido do outro acabou resolvendo à bala. Anteontem choravam duas. Outro impaciente descido do mesmo resolveu à bala. Maltratadas as cáries do meu tempo, hoje é dia de infância: crianças babam balas de chumbo, infância desnutrida a metais pesados que furunculam os pulmões. Faz o tempo passar doce, nos leitos dos impacientes: hospital do mundo inteiro: emergências sem dormentes.

O ser humano desencaixou dos trilhos. Ainda bem. Sentirei saudade de ter lutado por um mundo justo e de outra classe, saudade por dever ter devido mais; sentirei saudade da saudade de ter sido, sentirei perder amizades sem nem ao menos tê-las tido. Sentirei saudade de poder rimar.

Essa é a saudade mais ingrata: a rima que nunca escrevi. Deixei tanta ideia parada nos bolsos: e pensa você que não me dei bem? – casas e carros, em minha redondeza ninguém mais! – e como não? Mas e a rima?

Serei reconhecido por não dar pra ser lembrado?

Verdade é que posteridade não enche a boca de ninguém: mas seria além da vida, dignificar a matéria-prima, pedir a mais singela rima?

Não deu.

Lembrarão sempre por este traço: o cara que jamais deixou saudades.

Curioso é que sempre estarei vivo para ver alguém se lembrar de quem não mereceu lembranças.