Deus-linguagem

Uma vez ouvi da boca do Castelo. Ele falava com alegria, podia ver nos moviementos de suas mãos a paixão que sentia quando falava sobre aquele assunto. Eu já puxava o pensamento e a discussão para aquele tema de propósito. Só para ver seus olhos brilhando e a adrenalina subir. O velho Castelo parecia um jovem exaltado quando o assunto era aquele. Suas palavras foram mais ou menos estas:

"Deus não é linguagem. Se você se expressar para explicar o que é Deus comete uma grande heresia. Porque Deus não pode ser expressado pela linguagem. Se isto fosse possível Deus seria limitado a sua própria criação e isto é uma contradição. A linguagem é algo extremamente humano. E Deus não é humano, ao contrário, Deus é não-humano, não-coisa, não-criatura. A partir do momento que começamos a falar sobre Deus o transformamos em humano, em criatura, em coisa. É como se uma cadeira pudesse entender a essência de seu criador, neste caso o homem. Como disse um poeta grego, se os bois pudessem criar um deus este deus seria parecido com um boi, teria os mesmos sentimentos, os mesmos desejos. Da mesma forma o homem quando fala de Deus. Deus na linguagem humana torna-se homem. E como o homem só consegue se expressar por meio de uma linguagem qualquer jamais poderá descrever a verdadeira essência divina. E a linguagem por ser humana, logo é diversa. Assim como o homem é diverso, a linguagem também é diversa. E como o homem utiliza a linguagem para expressar seu conhecimento, logo o conhecimento humano é diverso. E se o conhecimento é diverso, quando o homem expõe seu conhecimento sobre Deus, este conhecimento também revela-se diverso. Em resumo, o Deus da linguagem é o Deus revelado por uma cultura, por uma ideologia, por um interesse, por uma experiência, etc. Mas o Deus verdadeiro é incognoscível. É inexpressável - perdoe-me os gramáticos".

Perguntei ao amigo Castelo então como poderíamos nos expressar acerca de Deus sem nos tornar hereges e nem provocar uma guerra santa. Ele me disse que coisas que ultrapassam o poder da linguagem devem ser ignoradas. Ignorar Deus, perguntei-lhe. E ele disse: "Não, jamais, mas devemos ignorar este Deus da linguagem". Eu entendi que o velho Castelo queria dizer, mas achava um tanto radical.

Quando nos despedimos naquela tarde fria de inverno do Paço Imperial, um moleque achegou-se ao Castelo e pediu-lhe com aquela vozinha treinada de pedinte: "Ei, moço, pelo amor de Deus, me dá um trocado?" Na mesma hora, Castelo sacou do bolso algumas moedas e as jorrou na mãozinha do moleque. Este sorridente saiu correndo e desapareceu na multidão que avançava em direção ao catamarã que diariamente cruza a Baía. Castelo novamente se despede de mim com um sorriso sem graça. Percebi naquele momento que o Deus da linguagem é necessário, pois sem ele jamais poderíamos explicar coisas inexplicáveis.

Rodiney da Silva
Enviado por Rodiney da Silva em 18/11/2006
Código do texto: T294924
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