Delírio Multifacetado

Ele desperta uma, duas, cinco vezes e eu mando tudo tomar no cu e levanto. Frio desgraçado de bom pra hibernar, mas sequer posso deixar mais do que cinco segundos do delírio ser alimentado na minha cabeça pois o risco de transgressão é grande. Meu nariz escorre, minha perna está arrepiada e meu pau mais se parece com um mamilo do que com um órgão que incha, cresce, endurece e etc. Abro geladeira e não há nada que se aproveite, como sempre. Mérito da minha muquiranice. Algumas garrafas de cerveja da pequena confraternização de aniversário enfileiradas.

Resolvi mandar tudo se lascar. Esta já é a quinta garrafa e faltam vinte minutos pra eu bater o ponto, lá do outro lado da cidade. Ando tão sem coragem de me enveredar por essas trincheiras que chamam de ruas e avenidas e enfrentar mais uma derrota nessa guerra que chamam de vida... Prefiro ficar aqui no meu bivaque, deitado na minha tarimba, mamando essa cerveja amarga imaginando que ela é alguma bebida fermentada de alguma fruta nativa de alguma (“alguma”, “algum”, “alguma”, ah, porra!) ilha moqueada no Oceano Índico ou então fabricada no monstro que mora embaixo da minha cama ou mesmo entre os pêlos do meu fiofó. Ah, porra, cara, entende? Eu prefiro ficar aqui enchendo o tampão sem nada no estômago a fazer planilhas, tirar xerox, assinar coisas e ficar ouvindo fofoquinhas que não me interessam. Que pelo menos hoje tudo fosse ao diabo, como sempre tem que ir e nunca vai.

Já passa do meio dia e as cervejas acabaram. Estou meio chateado, deitado atravessado na cama de casal em que passo as minhas noites e manhãs e tardes solitárias, pensando em como as coisas andam empretecendo iguais àquelas manchas de umidade no teto... Aquelas ali, consegue ver? Veja, mas veja bem: antes eu acordava com a coisa toda no gatilho, sabe? Era só sentar lá e esperar e depois limpar o rabo e levantar. Agora estou triste, cara, porque depois de umas 56 horas sem nenhum movimento no intestino eu fui lá e saíram duas bolotinhas de nada, quando eu pensei que mandaria um obus pro sistema de esgoto da cidade. Até aí, tudo bem, só seria mais uma decepção de merda (esta, no entanto, literalmente), só que ao passar o papel lá ao invés de contemplar o amendocrem, meu, tinha uma mancha bem redonda de sangue. Fiquei chateado e passei de novo. Um sangue mais fraco. E passei de novo e o papel retornou branco. Isso foi lá pelas dez, e estou aqui até agora, deitado, fingindo que não parece ter um galho de urtiga entre as bandas da minha bunda de tanto que a porra toda coça.

Acabei dormindo e agora são quatro e vinte. Em tempo: da tarde. Pensei em fumar um cigarro, mas lembrei que não fumo. Por incrível que pareça, não me ligaram lá do trabalho pra me interpelarem sobre a ausência.

- E aí?

- Não vem?

- O que houve?

- Foi ao médico?

- Pegou atestado médico?

- Vai ficar quantos dias de molho?

“Vocês é que são uma doença, caralho” – eu diria e bateria com o fone no gancho. Mas essa modernidade é tão aprazível quanto o galho supramencionado na região também supramencionada; pois se houvesse tal ligação, haveria um “bipe” de um telefone sem fio ou um “piii” de um celular; nada do gancho e nada do drama bonito digno de Hollywood.

Oito da noite e a mesa cheia de sacolas. Barras de chocolate, canela em pó, cerveja holandesa, lasanha congelada, pão de alho, pão de batata, tomates, batatas, queijo... Destampei uma garrafa e guardei as outras cinco no congelador, assim como a lasanha e as barras de chocolate. Cortei um pão de batata, coloquei uma fatia de queijo branco e duas rodelas de tomate e um pouco de orégano e joguei a coisa toda numa frigideira preta e velha e fiquei pensando no quão é bom não ter que almoçar num restaurante de comida insossa onde em toda e qualquer mesa que você escolhe acaba ficando diante de uma televisão onde meia dúzia de engravatados ou celebridades fica falando de futebol com um letreiro na parte inferior da tela fazendo enquetes imbecis onde os detentores da imbecilidade-cúmulo mandam mensagens de celular votando e a emissora recolhe toda a grana possível de um pequeno “sim” e “não” e faz cilindros com todos os papéis-moeda oriundos de tais votações e faz a incursão nos retos dos doutores do esporte; ou então num restaurante onde não há televisão mas o vozerio de cinco ou seis por mesas se eleva de tal maneira que você mal consegue ouvir seu próprio pensamento e o que resta é gritar dentro da mente o quão quão quão agradável seria costurar com cabos de aço a boca de todos os seres humanos e viver na Era do Silêncio. Ah, o pão ficou pronto.

Pior é quando uma biscate lá do outro lado do mundo dá a sorte grande e arranja um casamento com um príncipe... Tudo bem, até eu que sou mais besta me casaria com uma princesa, por amor ou por puro interesse, mas o que é enche o saco é a repercussão do outro lado do oceano que isso causa nas donas de casa ou nas esposinhas recém-casadas-com-o-mesmo-primeiro-namorado-desde-a-oitava-série que compram revistas e te chamam pro assunto como se isso fosse do seu interesse; como se isso fosse te ajudar em alguma coisa; como se você fosse receber um imã de geladeira sequer do casal, um pingüim pra pegar palitos de dente, cartão de agradecimento ou uma das latas que tiveram o barbante rompido enquanto o PT Cruiser fazia a curva na West End. Dez da noite e eu destampo a terceira cerveja lá de perto de onde o casamento foi realizado e brindo à vacuidade dessas cabeças

Diabos, já é meia-noite e não tem jeito: vou ter que ir amanhã trabalhar e levar bronca. O tesão da transgressão vai murchando conforme você vai se lembrando da manteiga que está acabando, do último rolo de papel higiênico que está ao lado da privada, que é a última garrafa de cerveja...

Muro. A cama vira um muro. Eu com minha vara, me equilibrando: de um lado uma preguiça e desinteresse pleno por tudo e do outro um consumismo que me consome - A tal da Vontade Schopenhauriana? Não me falta vontade de chegar no trabalho e esfaquear um por um daqueles que me causam engulhos e antipatia e também não me falta vontade de ter tutu sempre à minha disposição pra servir de placebo nessa almejada felicidade que não existe; e também não me falta vontade de colocar uma arma na boca e ver se existe inferno mesmo, se Dante fez direitinho a coisa toda na Divina Comédia; tomar um chopp com Hitler, com Nietzsche, e com o recém-chegado Osama Bin Laden. E, já que entramos nesse mérito, posso me reverter e tentar ser um cara mais dedicado às causas religiosas; pagar o dízimo, ficar na Praça da Sé lendo a bíblia em voz alta, dando a Deus todos os louros das minhas parcas conquistas e orando todas as noites pelos meus amiguinhos e pedindo uma mão divina caridosa e acalentadora no coraçãozinho dos meus inimigos. Claro, tudo isso com o interesse de descolar meu pedaço no céu... Ficar lá, tomando chá de boldo com... Com... Com... Com Deus e Jesus Cristo!?

Já estou no REM novamente. Presumo que falta pouco pro relógio despertar. Estou sonhando que fujo de um Padre que tem a cara do Gugu comedor de hambúrguer do desenho Popeye; subo uma encosta íngreme, tropeçando por várias vezes e ralando os joelhos em cada uma delas; pequenas pedrinhas entrando na palma da minha mão e eu continuo subindo e o Gugu atrás, mas sem hambúrgueres; erguendo a bata, revelando cambitos finos que mais parecem lingüiça defumada; o filho da puta subindo com mais vigor do que um bode montanhês e descubro que eu tenho que alcançar a casa na colina e tocar o sino que serei salvo do Padre Gugu. Alcanço a casa e abro a porta sem dificuldade alguma. É um celeiro. Subo uma escada de madeira podre e secularmente carcomida por cupins e toco um sino, um alçapão é aberto a meus pés e eu caio abraçado a uma Lolita de sobrancelhas ruivas em cima de um rolo de feno de dois metros de altura, fofinho, fofinho, fofinho... Estou salvo! Estou a salvo!

E o relógio desperta.

Toca uma, duas, cinco vezes... O frio é mais intenso que no dia anterior. Desta vez eu pondero um pouco antes levantar...

03/05/2011 - 18h53m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 03/05/2011
Reeditado em 03/05/2011
Código do texto: T2947173
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