1 Dia Chuvoso, 4 Parágrafos

A fina sola do apertado tênis sem palmilhas dando a impressão de estar andando descalço na calçada fria e úmida da Paulista; futucando com a ponta do guarda-chuva as manchas de chicletes incrustadas no solo; a calma verve musical do The Verve acariciando os tímpanos e fomentando ilusões mais do que aprazíveis – idílicas, até. Todo o bucolismo do concreto molhado e dos pneus em atrito com o asfalto também molhado formando um poético conjunto urbano. Os habituais aviões de vôo rasante moqueados sobre a espessa camada de nuvens cinza-chumbo carregadas. Como se não mais existissem. Não existem porque não os vejo. Não existo por que não me vejo? Mas se eu penso, eu existo. Um avião que não pensa, não existe? Esta unha dolorosamente fincada na carne do meu dedão do pé, não pensa?

“Essa profusão de pensamentos herméticos e paradoxais e repetitivos ricocheteando no meu crânio; um Dédalo em que faço minhas diárias caminhadas na esteira das dúvidas. Olhares furtivos carregados de melancolia querendo subtrair do tutano de qualquer ossinho de galinha um alento a uma nova poesia: assim caminha o escritor no meio da multidão, tão anônimo e ignoto como qualquer Deus; como qualquer criador que já não lembra mais o propósito de suas criaturas; como um criador apático consumido/contagiado pelo niilismo de suas criaturas. E que, no entanto, quer debelar a quase tangível inércia criativa a qualquer custo e continuar a encenação, tirar os personagens do atolamento das dúvidas existenciais gritantes e das falsas certezas e mostrar-lhes o verdadeiro propósito de suas vidas e histórias – mesmo que seja uma repentina morte em massa; três vezes Control+Alt+Del; Big Bang; Super Cordas; Entropia revertida ou fornimento de estopa suja de mecânicos de caminhões ao invés de cérebros e óleo diesel queimado ao invés de sangue; pinos de granada no lugar de auréolas de seios; um gigante acordando da hibernação e todos sendo defenestrados num bocejo malcheiroso; nossa carne tão onerosa desvanecendo-se como um holograma e, enfim, por fim, o fim.”

Essa gentinha futriqueira faladeira cheia de eiras e mais eiras sem beira nenhuma em que eu possa apoiar o mínimo faísco possível de atenção ou um meio sorriso amarelado cínico que seja já que toda a contração possível dos músculos do meu maxilar estão sendo usadas para rilhar os dentes no estupendo e magnífico autocontrole adquirido a muito custo na base de gritos e caneladas para não explodir enlouquecer ou matar ser morto a toa graças a uma explosiva irascibilidade vinda desde o berço – CALEM A BOCA!

As poças espalhadas. As poças espalhafatosas refletindo neons. As poças fazendo splash-splash. Poças escuras. Poços sem fundo – pra quem tem o maior dos abismos dentro de si e fita atentamente seu reflexo em meio a arranha-céus imponentes. Apitos ticando o caminho a seguir. Pipi direita. Pi esquerda. Parado numa encruzilhada da vida; ouvidos com tampões herméticos de morcegos. Não há PI que me salve.

28/04/2011 - 18h39m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 28/04/2011
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