VIVER É PERDER

E faça-se a luz! O que outrora foi feto enfim irrompe das profundezas placentárias em direção à vida! A progenitora está exausta, porém satisfeita. É o seu primeiro rebento! Ou quem sabe segundo, terceiro, quarto... não importa. O obstetra ergue o recém-nascido como Bellini o fez com a Copa de 1958. “É um(a) menino(a)!”, exclama o doutor. A fim de ratificar-se da condição do bebê, o médico aplica-lhe um leve tapa nas nádegas. O choro confirma: mais uma vida está concebida. E o pequeno exemplar humano está agora destinado a enfrentar o frio, a fome, os microorganismos...afinal, não conta mais com o invólucro uterino, seu abrigo das intempéries do mundo exterior.

O tempo segue seu fluxo natural. Nem vagaroso, nem apressado. Esta percepção depende de quem a sente. A criança já pode andar, comer e proferir pequenas frases. Ao completar oito ou nove anos, os pais definem: “já é um(a) mocinho(a). Não pode chorar por qualquer coisa. Já pode tomar banho sozinho(a). Já pode andar de bicicleta sozinho(a)”. A idade, ainda que tenra, atribui à criança uma série de pequenas responsabilidades. Chorar e pedir ajuda dos pais já não fica bem para quem já passou por algumas experiências.

A adolescência. Como sugere Dostoiévski, é a incursão no mundo adulto. O jovem encara desafios maiores na escola, envergonha-se das acnes, treme diante da possibilidade de não ser aceito pelo grupo, gagueja ao cogitar uma abordagem à(o) menina(o) bonita(o) do colégio. Está, portanto, perdido o direito à criancice. Ficar com os pais ao invés de sair com a turma é “coisa de criança”. Pedir permissão para a mamãe é “coisa de criança”. Dormir cedo é “coisa de criança”. Manter a virgindade é “coisa de criança”. O adolescente impinge à sua figura uma horda de atitudes maduras, segundo o próprio.

Aos 18 anos a vida adulta está iniciada. Trabalhar é preciso, bem como iniciar a faculdade. “Que saudades da infância, da adolescência...mamãe sempre preparava um chocolate quente e um pãozinho com queijo todas as manhãs.... eu tinha tempo para jogar bola, botão e videogame...todavia, não tenho mais tempo para nada...”. Tristemente, o nosso ser vivente lamenta mais uma perda. Não consegue mais usar o tempo a seu favor. O acúmulo de atribuições é infinito.

Terminada a faculdade, a vida profissional está a pleno vapor. O cidadão de meia-idade visualiza a própria trajetória como se observasse um retrovisor automobilístico. Em uma mesa de bar, com os colegas de trabalho, após alguns goles etílicos, recorda, saudoso: “ah, meus tempos de faculdade. Como eu era jovem e inocente. Tinha uma visão de mundo tão romântica, tantos sonhos...e agora? Será que cheguei onde eu queria? Meu Deus, se eu pudesse consertar algumas coisas”. E sente parcialmente perdido o direito a sonhar. Durante toda a juventude, pode ter visto inúmeras oportunidades transpassando-lhe a visão. E só agora, na condição de estabilizar a vida, tais pensamentos assomam sua mente, atingindo-o como um piparote.

O momento da aposentadoria está próximo. Os reflexos não são mais tão aguçados como há poucos anos. O pensamento não é mais tão fértil. A memória, por vezes o trai. As pernas, braços e costas sentem a bravia ação temporal. Doenças típicas da idade o tornam vetusto para se manter em atividade. É hora de apegar-se aos recursos governamentais. Será que na juventude foi prudente ao investir em uma previdência privada? De qualquer forma, agora já não tem mais o direito de voltar atrás. Vê mais um horizonte de vida perdido.

A constante busca pelo progresso impõe uma diária determinação ao ser humano. Nossos objetivos são arrancados a fórceps. Todos os dias, todos os momentos, vivemos a competir por um emprego rentável ou por um assento no ônibus. O tempo é cada vez mais fracionado, racionado. O que importa são os resultados. Conforme Maquiavel, “os fins justificam os meios”. E constantemente, perdemos o direito à dádiva da vida. Derrota esta imposta pelo próprio ser humano ao seu semelhante. E que permanece se auto-intitulando “sapiens”, pensante, racional.

Andre Mengo
Enviado por Andre Mengo em 31/03/2011
Reeditado em 19/03/2012
Código do texto: T2881459
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