A PERDA

Regina nascera sem pai, com pouco tempo de vida, era órfã de mãe. Criada por uma tia, sempre fora obrigada a trabalhar desde muito cedo. A vida não lhe roubara nada, pois nada tinha para ser roubado, negaram-lhe o direito de ser criança, de estudar, de ter um lar colorido. Aos dezenove anos, deu à luz a uma menina, apesar da miséria em que vivia, mergulhou numa felicidade intensa, adorava crianças. Nos próximos anos, engravidaria mais cinco vezes, trabalhando duro para sustentar cada um dos seus rebentos, lutando contra a violência que acalenta os moradores de uma favela.

Eu fui a sétima filha, adotada. Nasci de sua primogênita, apenas nasci. Minha avó me amou, me registrou e mostrou-me um útero quente, protetor, do lado esquerdo do peito. Amou-me como filha, como a filha mais querida, seu orgulho. Com um brilho intenso no olhar, apresentava-me: "Essa é minha filha, é professora!". Tímida, eu sorria por dentro, e o vemelho que vinha à face denunciava a emoção que aquele gesto me causava. Diferentemente, dos seis filhos, eu estudei, a vida já não estava tão difícil quanto antes, e minha Mãe do coração me alimentou de amor e dedicação, comprava, com muito esforço, todos os livros que a escola pública solicitava. Naquela época, o governo não dava os materiais escolares, tampouco, existia bolsa-alguma coisa. Concluí o Ensino Médio, comecei a trabalhar e ingressei numa Universidade, queria mais, me especializei e fiz o Mestrado. Cada degrau que subi (e subirei) dedico à essa mulher que tanto alimentou minha alma. Um ano após o meu nascimento, minha mãe biológica deu à luz a um menino, também adotado por minha Mãe-avó.

Dona Regina sempre fora uma mulher batalhadora, uma líder por excelência, com vários dons: espirituais, medicinais, artísticos. Era a benzendeira do bairro, a toda hora, via-se uma mãe no portão, com o filho no braço e três folhas de pião, acreditando no poder de cura daquela mulher. Eu sempre pedia para que ela me dissesse qual era a reza que resmungava, enquanto movimentava a planta, mas era segredo. Na minha inocência de criança, eu não percebia que a reza era o que menos importava, que a fé era a chave daquelas curas.

Era a parteira e também a enfermeira da região, fazia os curativos de todas as enfermidades, depois chegava em casa a comentar: “- Me repugnei toda com a ferida de fulano de tal”. Decorava as festas e as cestas para os orixás, costurava todas as roupas da família e da vizinhança, plantava amor, colhia gratidão. Perdera as contas do número de afilhados que levara à igreja, a Madrinha do bairro de Santo Amaro.

Presenciei as duas maiores dores de minha Mãe-avó: a morte dos seus dois filhos, o homem primogênito, em 1992, e o caçula, em 1996. Dos homens, os prediletos. Por um instante, pensei que ela não resistiria a essas perdas, desmaiou, deixou de alimentar-se, desfez-se em lágrimas e sofrimento. Mas ela era forte, sabia que os vivos precisavam dela.

Em 2003, tomei uma decisão muito difícil: sair de casa. Empreguei-me distante da residência onde morávamos, aluguei um quitinete próximo ao trabalho e parti, levando apenas algumas roupas, deixando as demais para enxugar as lágrimas de minha Mãe. O tempo secou as lágrimas, nos víamos e falávamos sempre. A princípio, senti-me culpada, ingrata, como se estivesse abandonando um filho ainda criança. Mas eu precisava respirar outros ares, adquirir minha individualidade, liberdade, cortar esse cordão umbilical com minha Mãe-Avó, tão dedicada, tão rígida, ciumenta e amada.

Terminava o ano de 2008, e havíamos combinado de passar o reveillon na praia, próxima à minha casa, no último instante, ela desistiu, deixando minha noite sem luz, sem fogos, sem mar. À meia noite, liguei, desejei toda felicidade e disse que a amava, ela respondeu “também”. Não costumava falar de sentimentos, nunca ouvi um "eu te amo" daqueles lábios cansados, mas tenho certeza de que aquele foi o maior amor a mim ofertado.

Nos primeiros dias do ano, o Recife já adquire um aroma de confetes e serpentinas. É como se o carnaval entrasse nas veias dos recifenses junto com os espumantes brindados. Foi a primeira festa que minha mãe me ensinou a amar. A segunda foi o São João, durante seis anos, me colocava nas quadrilhas juninas, primeiro, de matuta, depois, de sinhazinha, princesa, por fim, rainha, sempre a costurar meus vestidos. Seu sonho era me ver de noiva, mas eu não tinha os dotes físicos necessários para esse posto. Nem o desejo real de subir ao altar. Para ela, eu era linda, só para ela.

Sim, mas voltando ao Carnaval, colocava-me nos braços e íamos a todas as prévias carnavalescas no Pátio de São Pedro. Produzia minha fantasia e nos espremíamos na multidão do Galo da Madrugada. Não sabia se aquilo era bom ou ruim, mas o frevo causava-me uma emoção tremenda.

Percebi que, no carnaval de 2009, mainha estava triste, não iria desfilar em nenhum bloco, como de costume. Incentivei-a, fomos ao centro do Recife comprar os tecidos para confeccionar a fantasia. Ela estava com um ar tão cansado, com uma tristeza no olhar.

Chegou o carnaval, minha Mãe vestiu um lindo e simples vestido decorado por mim, mas, de súbito, passou mal e, durante os dias de Momo, esteve hospitalizada. A partir desse momento, não vi mais minha mãe sorrir. As noites no quarto de hospital levaram a cor de sua pele e o brilho dos seus olhos. Eu tinha certeza de que ela se recuperaria, tantas outras estadas em hospitais vivenciei a acompanhá-la. Lembro de um certo dia no qual ela acordou, colocando muito sangue pelo nariz e a boca, por ser fumante, o primeiro diagnóstico que ela se deu foi "tuberculose", e isso a atormentou de tal modo que, a partir daí, não mais fumou. Uma hemorragia causada pelo aumento da pressão arterial, venceu o cigarro, um inimigo presente há mais de cinquenta anos na vida daquela guerreira.

Era 09 de março de 2009, acordei com uma angústia, minha mãe continuava internada. Ela não gostava de hospital e aquela estada a atormentava. Uma terça-feira ensolarada, mas meus olhos estavam nublados, eu precisava trabalhar. Com minha irmã no hospital, fui ministrar minhas aulas. Antes que concluísse a primeira aula, o telefone tocou, era minha irmã, dizendo que mainha estava passando mal, muito cansada. Saí correndo, levada pelo medo. Ela estava com problema respiratório. E durante todo o dia, teve visões, via crianças, homens, carros, árvores. Ela tinha medo de morrer, e eu morria de medo de perdê-la. Oramos o Pai Nosso, pedimos pela saúde dela. Meu coração não sossegava.

Anoiteceu e minha irmã chegou ao hospital para dormir, eu também queria permanecer a noite próxima à minha mãe, mas fui convencida pelas duas a descansar em casa e retornar pela manhã. Beijei-lhe a testa, disse que a amava e que voltaria no outro dia, ela sorriu. Ao chegar à minha casa, o telefone tocou, era minha irmã, desesperada: “- Mãe morreu! Mãe morreu!”. Nesse momento eu morri, uma dor imensurável me atropelou, me partiu ao meio, me fiz cacos, sem pá para juntar-me. Já havia pensado em como seria quando esse dia chegasse, como seria quando as letras se juntassem para anunciar a frase fatal. Nada se compara ao que eu senti ali, nada se compara ao vazio que abriga em mim.

Hoje, 09 de março de 2011, dois anos que minha querida mãe se foi, e é tão grande a saudade daquela mulher que me ensinou a viver, de quem eu apenas não herdei o "dom" de benzer e curar, mas trago a criatividade, a liderança e o autruísmo.

Queria ser novamente criança, de mãos dadas à minha Mãe, a frevar e cantar "queiram ou não queiram os juízes, o nosso bloco é de fato campeão". O carnaval ainda banha minha alma, pelas ruas coloridas do Recife, lembro de minha amada Mãe e me vejo a cantarolar: "A dor de uma saudade vive sempre em meu coração/ Ao relembrar alguém que partiu, deixando a recordação, nunca mais ao de voltar os tempos felizes que passei em outros carnavais".

É quarta-feira de carnaval e eu estou em cinzas.