Vida Engraçada

É realmente muito engraçado ser largado no mundo por uma vontade duvidosa de terceiros, ser criado em meio a desunião de todos os tipos, ter preceitos de religiosos imbecis extremamente arraigados em sua moral - como, por exemplo, um mal-estar ao começar a cogitar a possibilidade de que Deus é um verdadeiro embuste criado pela imaginação fértil do homem -, ser fornido de uma capacidade imaginativa capaz de derrubar montanhas e criar os sonhos mais tenros e até mesmo humildes e vê-los todos sendo despedaçados porque você não nasceu com o dom para a coisa; é realmente muito engraçado esse mundo.

Mas eu acabo lidando com as perdas como parte disso tudo que eu chamo de vida.

É foda.

Já tem quarenta e cinco minutos que eu estou nessa sala de reunião nesse prédio na Praça da República. Tudo aqui parece ser muito caro. A sala, apesar de pequena e sóbria, tem qualquer coisa de suntuoso no ar. Talvez aquela cafeteira importada ali. Ou aqueles copos de formato bizarro. Ou esse vaso aqui do meu lado, enorme. Cheguei vinte minutos adiantado para essa entrevista e a entrevistadora está vinte e cinco minutos atrasada. Posso mandar essa filha da puta embora e pegar o cargo dela? Porque se eu chego dois minutos atrasado já recebo o dardejar de um olhar clínico de especialista-dona-do-meu-destino e recebo marcações codificadas ao lado do meu nome e tchau oportunidade de emprego.

Falaram pra mim que eu não tenho com o que me preocupar. Deram até as mentiras a serem contadas, caso certas perguntas capciosas fossem feitas. Digamos que eu estaria parcialmente pronto pra responder qualquer coisa se essa mulher estivesse aqui no horário combinado. Agora fico aqui, com sede, trancafiado numa sala em que mal posso debruçar nessa mesa de vidro por que se ela quebrar vou ter que vender as pregas no Largo do Arouche por dezoito anos para pagá-la. Mas tudo bem. Tenho que estar bem. Tem esse quadro na parede. Na verdade uma fotografia com uma panorâmica que pega metade do Viaduto do Chá e todo o Vale do Anhangabaú.

É realmente irônico ver que ali naquelas bordas do Vale meia dúzia de brasileiros vivem o talvez meu único sonho enquanto eu espero uma mulher pra quem terei que sorrir quando a minha vontade é de estapeá-la na cara; sonhar não vale de porra nenhuma, é o que eu quero dizer.

"Não desista de seus sonhos".

"Acredite nos seus sonhos".

Que adianta sonhar, se eu não nasci com talento?

Que adianta sonhar, se meu ombro desloca?

Que adianta sonhar, se silkam as madeiras com pó de ouro?

A única coisa que vale a pena sonhar é com o dia em que me encontrarei com meus ídolos, com meus inimigos, com todas essas mulheres que fiz sofrer e com as que me apresentaram uma face do demônio; a única coisa com que vale a pena sonhar é com a minha morte. Só nela poderei sonhar de verdade. Senão puder, tudo bem. Costurem um sorriso no meu corpo sem vida e me entreguem aos vermes da terra. Só não me peçam para sorrir agora, completando sessenta minutos de espera torturante.

Alguém bate à porta. Silêncio. Bate de novo.

- Oh, oi, desculpa.

- Nada...

É uma mulher. Uma loira com cara de quem ganha bem. Deposita um ornamento, uma espécie de troféu ao lado da cafeteira cara e sorri pra mim.

- Já foi atendido?

- Acho que sim... Pediram pra eu esperar aqui...

- Ah sim... Com licença.

- Toda.

Sai e fecha a porta.

No tal do troféu o nome da entrevistadora. Um mimo por ela ter sido palestrante em uma convenção nacional de alguma coisa muito importante.

Por quanto tempo a platéia esperou até que a palestrante aparecesse?

Chove lá fora. E a cada minuto que passa, mais próximo eu fico do horário de pico. O que significa ficar meia hora parado esperando um metrô em que eu consiga entrar e demorar duas ou três horas pra chegar em casa, depois de muito praguejar, blasfemar, pensar em assassinatos, pensar em suicídio e desejar com toda a força inútil do meu coração que a Lua de repente "caia" em cima da Terra e acabe com essa palhaçada de uma vez.

Maria põe um filho no mundo. Ele nasce sem uma perna.

Bernadete põe um filho no mundo. Ele cresce e vira doutor sodomita pedófilo.

Ivanete aborta e sofre preconceitos por ter tirado uma vida inocente.

Bonito mesmo é colocar pecadores, estupradores, políticos, assassinos, analistas atrasonas de RH no mundo. É disso tudo que o Planeta precisa mesmo.

Espera, não estou revoltado com nada. É que gosto de dissertar sobre a falta de sentido de tudo isso, do quão egomaníacos são os seres humanos. Não é revolta, acredite. Se o fosse, compraria uma arma e descarregaria por aí, deixando uma bala pra minha cabecinha doente. E já era.

Tem um travesti ali embaixo, do outro lado da rua, sob um pequeno toldo da entrada de um cabaré. Cabaré, marcenaria, estacionamento. Chove torrencialmente e ele/ela não quer borrar a maquiagem, desgrenhar a chapinha da peruca, essas coisas.

Lembrei que quando começar a ser entrevistado terei que falar do meu trabalho anterior. Das minhas odiosas tardes ponderando se pedia demissão ou não, sonhando com o feliz dia que receberia a notícia de que "infelizmente" precisaria ser mandado embora. Tendo que relembrar aqueles procedimentos repetitivos, tendo que passar a mão na cabeça de acéfalos que ganhavam dez vezes mais do que eu e de brinde lembrar daquelas solteironas religiosas invejosas telespectadoras de novela-reality show enchendo a porra do meu saco com suas filosofias rasas de vida embasadas na televisão e nas fofocas da paróquia.

Que bosta... Por que eu não posso falar do futuro? Das minhas aptidões extra-curriculares?

- Moça, pode ter certeza de que eu não vou escrever "agente".

- Moça, pode ter certeza de que eu não vou falar "vou estar verificando"

- Moça, pode deixar que eu sei formular uma resposta formal para e-mail.

Por que eu não posso falar que eu quero somente uma chance pra mostrar e desenvolver o meu potencial?

- Falar do passado na outra empresa causa desgosto nas minhas células, moça. Elas passam mal e vomitam. E seu vômito se multiplica, procria, gera novas células, que por sua vez nascem doentes, podres e sabe aonde isso vai parar? Numa sessão de quimioterapia que vai queimar esse meu fundo de garantia mais rápido do que metade do tumor, moça. Vamos, dê essa vaga pra mim de uma vez!

Puta que o pariu, oitenta minutos de atraso. Que seriedade eu posso esperar dessa consultoria?

Posso ligar para o meu pretenso contratante e colocá-lo ciente desse ultraje?

- Desculpa pela demora.

- Tudo bem.

- Demorei?

- Um pouco.

- haha.

- Ééé...

- Então, vamos começar?

- Sim.

- Fala um pouco da sua experiência profissional...

Dez minutos depois um aperto de mão e um "boa sorte" engasgado.

Dou tchau pro porteiro entediado. Saio na chuva. Pulo poças marrons. Ganho beijinho de travesti. Bilhete Único sem crédito. Metrô cheio e lento. Ônibus que não vem. Ônibus cheio e motorista que não troca de marcha. Chuva.

Três dias depois a notícia de que o emprego é meu.

Nada vale o esforço que se faz. Porque nada se conquista com esforço, com sonhos, com força de vontade.

Quer dizer, talvez eu não tenha nascido munido com as armas necessárias para sobreviver nesse mundo; talvez deus tenha me sacaneado jogando nesse planeta como ser humano sendo que eu teria me dado melhor sendo um verme incrustado num meteorito que vaga por bilhões de anos pelo Universo.

Muito engraçada essa vida...

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 08/03/2011
Código do texto: T2836049
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