SEM AS CALCINHAS MUNDANAS

Há anos ela mantinha a rotina comum às tantas mulheres de família das grandes cidades.

Logo de madrugada acordava para fazer o café, preparava as crianças para o dia e pontualmente às cinco e trinta, no mesmo ponto imperceptível da esburacada calçada, já aguardava pacientemente pelo coletivo atrasado que a levaria ao seu destino de sempre.

Ao acessar o seu ônibus, educadamente dizia "bom dia" aos mesmos assíduos companheiros de viagem, retirava da bolsa o seu direito de cidadã, o abençoado "bilhete único", para seguir em pé, num amontoado surreal de gente, como se fosse diaria e sadicamente pisoteada pela vida, num impressionante exercício humano de resistência e resiliência.

Era uma mulher com firmes propósitos.

Seus cinco filhos, o maior deles ainda com dez anos, ela os sustentava sozinha com o árduo trabalho de doméstica e depois de muita luta tivera a sorte de conseguir um espaço público, uma creche da prefeitura, para que pudesse dar conta da sua dura "vida de mulher" num roteiro de alguma paz.

Todas sabemos que, hoje em dia, ser mulher não é apenas uma questão de gênero, pelo contrário, para a maioria é assumir um violento status duma espécie supra-humana.

E assim ia ela, firme pelo seu "dia- a- dia", até que um dia o seu cenário mudou, testemunhado sob os olhos dos companheiros de igual luta.

Certa manhã, quando o ônibus se aproximava do seu ponto, ela se colocou em frente ao coletivo, o parou através duma sinalização agitada das mãos e gritou: "Motorista, hoje você me dá uma carona, estou sem bilhete e tomo Gardenal!"

Como era conhecida de todos, subiu no coletivo e começou o discurso:

"Amigos, Deus falou comigo! Me disse que terei uma vitória! Vocês não me verão mais aqui! Mas para isso não posso mais usar as calcinhas do mundo! Tenho que usar calçolas! Como não tenho calçolas, hoje estou sem calcinhas! Querem ver como é verdade? Não, não posso me mostrar para vocês, Deus não me perdoaria..."

Lá dentro, houve um silêncio absoluto.

Nem mesmo aquele barulhento e infernal bater dos motores dos coletivos da cidade teve coragem de ranger seus pinos enferrujados...para aquele triste descompasso de vida.

E assim, seguiu ela no coletivo ,agora para um outro desconhecido, porém, ainda mais sofrido destino.

Quando as portas se abriram, saltou no seu ponto de sempre, olhou para o céu como se nunca o tivesse visto, a se perguntar se já havia lá chegado, e então, depois de mais uma pílula dum remédio, seguiu a conversar com Deus...

Nota:

Relato que ouvi, dum fato verídico dum coletivo de Sampa, ocorrido neste Março, mês das mulheres.