A compra do Dicionário

Em tempos de adolescência, a curiosidade se transforma numa aventura exuberante. É como se o coração ficasse gritando pela vida com gostosura o tempo inteiro e com a crença de que o sorriso ficaria definido para sempre. E a palavra de ordem era “buscar”. Buscar a vida, a luz, o entendimento, a poesia, a graça e algum conhecimento.

Sentia-se a adolescência assim, pelo menos antes de tanta tecnologia, das coisas prontas, tudo on line, on time, imagens fantasticamente definidas em 3 ou mais dimensões.

A adolescência – ainda nos anos 70 – era regada a curiosidade e a inúmeros nãos. Pouca coisa nos era permitida e sabíamos que as conquistas se dariam com o tempo: a conquista do espaço, o direito à palavra, ao sonho e fantasias. Teríamos que desenhar o futuro a caneta, porque o lápis e a borracha dariam mostras de total insegurança e isso não era bom sinal.

E o meu professor de Português – fantástico, redondamente simpático e risonho e que muito me ajudou a deslanchar para o ato de falar em público e para a suavidade da escrita – comentou muito positivamente sobre o lançamento do Dicionário Aurélio, muito esperado e seria o mais extraordinário, o mais completo de todos até então publicados no país. A publicação estava prestes a sair pela Editora Nova Fronteira e, no nosso modesto sobrado em São Paulo, no bairro operário do Cambuci, eu comentei com a minha mãe sobre esse futuro lançamento.

Eu sei que algumas economias foram feitas com o firme propósito de adquirirmos a tão esperada obra e, no dia seguinte ao anúncio de que o “Aurélio havia chegado às livrarias” nos colocamos em prontidão.

Pra nós essa compra foi motivo para muita, mas muita alegria mesmo. Tomamos o ônibus logo pela manhã e nos dirigimos ao centro da cidade, na Praça João Mendes, atrás da Catedral, e éramos só sorriso e animação. A livraria do Povo estava à nossa espera – pelo menos era o que parecia – dado o sentimento de festa que tomava espaço nas nossas vidas. Era um dicionário imenso – eu jamais havia visto um igual -, de capa dura, a parte superior branca e a inferior amarela e branca também.

E fomos pra casa e nos pusemos a procurar o significado das mais variadas palavras. Papel fino, era o típico papel-bíblia e o cuidado para o manuseio era rigoroso e suave. Procurar as palavras era um misto de magia e respeito, curiosidade e gratidão ao mestre. A todos os mestres.

Sem demora eu me apressei a pegar o meu dicionário de bolso e ofertei a uma grande amiga da época, a Ana Isabel. Essa amiga, muito especial e sempre de sonoras gargalhadas, era de condição econômica bem mais difícil que a minha. Foi através dela que conheci de perto o que é morar num cortiço, o que é perder o único colchão em enchente, o que é dividir o único banheiro daquela habitação popular com vários outros vizinhos. Foi no cômodo que ela morava que eu pude ver, nas paredes esburacadas e encardidas, lado a lado um crucifixo e uma foto do time do Corinthians e comecei a compreender um pouquinho de sociologia, mesmo que na marra! E foi também com ela que aprendi que não há limites para o bom humor, para o não resmungar as perdas, que as coisas vão se resolvendo e que mágoas ou rancor são exemplos clássicos de atraso de vida.

Mas eu entreguei o meu pequeno dicionário para a Ana não para me livrar dele, absolutamente, mas eu entendi, de forma sincera, que ela o consultaria muitas vezes, seria útil para o cotidiano, os trabalhos escolares. Ela poderia procurar o significado de muitas palavras ali, mas certamente não procuraria sinônimos para tristeza, ódio, inveja, ciúmes e pequenez.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 16/02/2011
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