Pessoas Normais

Era o final do horário do rush. O ônibus seguia em direção ao subúrbio, conduzindo mais uma leva de trabalhadores cansados, quando ele entrou.

Logo que embarcou, largou uma caixa de papelão embaixo do banco ao lado da porta de saída, por onde, aliás, havia entrado. Posicionou-se como um galo preparando o canto matinal e soltou o bordão introdutório:

- Senhoras e senhores passageiros, desculpem interromper o silêncio da sua viagem. Eu ...

Porém, de forma reticente, cortou o que estava falando. Com a experiência de muitas outras jornadas como aquela, percebeu muitos olhares de censura em sua direção: alguns passageiros pareciam não estar propensos a desculpar a interrupção do tal silêncio. Habilmente emendou a frase que vinha dizendo com uma sutil ameaça:

- ... prefiro tá aqui fazendo barulho com meu trabalho do que tá roubando vocês. É, senhoras e senhores, eu podia tá de arma na mão barbarizando vocês, mas tô vendendo doces.

Pronto. Tendo conseguido inibir a maioria dos críticos, o camelô voltou às negociações:

- Hoje, trago pra vocês, na promoção, o passatempo da sua viagem. Tenho balas de diversos sabores. Tenho chocolate, amendoim, paçoca, bananada de abacaxi, bananada de morango, bananada de limão e bananada de banana.

Pode soar estranho, contudo, foi isso mesmo que ele anunciou: bananada de banana! Quem poderia imaginar que, um dia, a humilde e popular bananada precisaria de um sobrenome para ser identificada no meio de sua estranha parentela?!

Bem, voltando ao camelô:

- Na minha mão você compra qualquer pac

Repentinamente, o ambulante interrompeu a auto-propaganda e, sem mais nem menos, desceu da condução apressado, deixando para trás, esquecida no chão, a tal caixa que ele havia largado quando subiu.

Próximos ao local estavam alguns passageiros que, entre curiosos e acanhados demais para tomar uma iniciativa, olhavam aquela caixa abandonada controlando a muito custo a vontade de pegar para ver o seu conteúdo.

Após alguns momentos de indecisão, dois rapazes aproximaram-se. Um deles apanhou e abriu a embalagem. Havia em seu interior três pacotes de bananada, ainda fechados, com algumas dezenas de unidades em cada um.

Diante daquela visão, como se estivessem obedecendo a um comando secreto, mas da metade das pessoas próximas atacaram, com a voracidade de um cardume de piranhas famintas, os pacotes que, caindo das mãos do rapaz que ainda os segurava, espalharam seu conteúdo pelo piso.

O que se viu então foi um grupo de seres humanos, todos adultos, todos aparentemente normais, que, e novamente comparando, agora como um bando de afoitas galinhas a cata de milho, se moviam pelo chão disputando, quase a tapas, bananadas de abacaxi, limão e morango. Sem esquecer, claro, as bananadas de banana.

Dentre todos aqueles elementos que estavam ali, quase rastejando, na luta pela “iguaria”, havia um que carregava uma sacola de plástico, do tipo dessas distribuídas no comércio para transporte de mercadorias. Inadvertidamente, a pobre criatura, empolgada como estava com a contenda, descuido-se e aproximou a embalagem da zona de conflito. Sobrou para a sacola: foi agarrada e destroçada por diversas e impiedosas mãos. Pelo chão, para constrangimento do dono, misturando-se aos restos de doces, estavam, agora – com visíveis sinais de sujeira –, meias, camisa, calça e até cuecas.

E, diante da gargalhada geral causada por este último incidente, deu-se por encerrada a disputa. A viagem seguiu como se nada tivesse acontecido. As pessoas retomaram seus lugares, voltando a se fingirem de normais.

Acho que, pelo menos naquele momento, ninguém pensou que aquela algazarra toda havia sido patrocinada por uma única pessoa. Talvez, fosse ele, um desesperado pai de família.

Mas pra quê lembrar de coisas tristes se tínhamos rido tanto com as roupas pelo chão? Por que pensar no prejuízo daquele camelô se, agora, tínhamos muitos doces para levar pra casa? Azar o dele. A culpa não é nossa. Afinal de contas, somos apenas pessoas normais.

ooOoo

(republicação)

Sykranno
Enviado por Sykranno em 29/01/2011
Código do texto: T2759257
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