Uma Mordidinha na Maçã
Fiquei surpresa ao tomar conhecimento do conceito de Rumspringa. Achei-o um tanto moderno, especialmente se analisado no contexto da comunidade Amish, grupo religioso conservador que migrou da Europa para a os Estados Unidos e Canadá no século XVII e que reluta em abandonar esse período histórico, vivendo como rústicos camponeses, avessos a todo tipo de tecnologia.
Os Amish são anabatistas, ou seja, a adoção da religião por meio do batismo só se dá quando o fiel atinge a idade adulta e o faz de forma voluntária e consciente. O período da adolescência, que antecede esse ritual de comprometimento com a fé e com toda a estrutura social Amish é chamado de Rumspringa. Durante ele, o comportamento rebelde e algumas atitudes incompatíveis com os costumes rigorosos da comunidade, como a condução de veículos motorizados, a prática do sexo e até o uso de drogas são tolerados. Não é à toa que cerca de 20% dos jovens acaba optando por deixar a comunidade ao término desse período. Depois de provar do bem-bom com toda a liberdade, deve parecer mesmo muito difícil submeter-se ao radicalismo Amish. Os que ficam, porém, abraçam a vida simples e dedicada à família, ao campo e a Deus, não necessariamente nesta ordem.
Em nossa sociedade, um tanto permissiva e indulgente com os arroubos da juventude, não existe este costume ou algo que se equipare a ele. Talvez por isso, definir juventude seja tão complicado por aqui. É fato que a adolescência é um período confuso em que o jovem tenta romper com os limites da infância, ainda relutando em submeter-se aos da idade adulta, enquanto busca as benesses da maturidade, sem querer despedir-se das vantagens pueris. Por outro lado, seus pais exigem dele exatamente o oposto. Esta batalha pode durar meses ou anos. Dificilmente se sabe quando isso acaba, mas, há muito, deixou de ser uma questão de idade. Muitas garotas que mal ostentam peitinhos ou guris ainda imberbes assumem gravidezes extemporâneas ou rotinas escolares e profissionais que nos deixam cansados só de ouvir falar, enquanto grisalhos Peter Pans fogem desavergonhadamente das responsabilidades que a vida lhes impõe. Rê Bordosa, a personagem de Angeli, é um divertido retrato dessa geração Rumspringa de meia idade.
Convenhamos, todos nós gostaríamos de “curtir a vida adoidado” ou, pelo menos, com liberdade para só fazermos o que nos dê vontade. Tanto é que as contas bancárias de Elizabeth Gilbert estão transbordando com os lucros de venda e adaptação para o cinema do seu livro autobiográfico “Comer, Rezar e Amar”, onde conta como abandonou uma vida adulta estabelecida para sair pela Europa “experimentando”, em busca do autoconhecimento. E a versão masculina, do caronista Andrew Gottlieb, “Beber, Jogar e F@der” completa o rol. Quem é que não gostaria de sair por aí, comendo, bebendo, jogando, namorando e - por que não? - estudando e divergindo sobre a fé, de preferência sem a parte chata das consequências? Dar uma mordidinha na maçã sem o risco da expulsão do paraíso?
Não importa se a sua lista difere desta aqui. Não fosse pelo medo das consequências, todos nós faríamos ou experimentaríamos algumas pequenas ou grandes loucuras, mesmo que por um pequeno intervalo de tempo, antes de nos comprometermos - pela primeira vez ou novamente - com a vida, que, na maior parte das vezes, mesmo não sendo uma vida Amish, também consegue ser bem chata no meio de tantas contas para pagar, problemas com o trabalho, o cônjuge, os filhos... Adolescentes, claro!
A boa notícia é que, diferente dos Amishes em Rumspringa, somos livres para, a qualquer momento, escolhermos nosso destino, persegui-lo ou tentar mudá-lo, caso ele não nos esteja satisfazendo. A má notícia é que tudo tem um preço. A 3ª lei de Newton (da ação e reação) vale também para pessoas e, entre elas, muitas vezes, as reações excedem em força e intensidade as ações originais.
Na verdade, penso que a liberdade de alguém é inversamente proporcional à sua capacidade de antecipar consequências. Talvez por isso, seja tão mais fácil ser livre na juventude. Minha mãe usava uma expressão para nos fazer repensar nossas decisões: “sua cabeça é sua sentença”. Não faço idéia de onde ela tirou essa versão meio macabra do conceito do livre arbítrio, mas por ela, abandonei cedo a adolescência e sua deliciosa e inconsequente liberdade.
Pensando bem, acho que se as mães Amish, fossem como a minha mãe, essa tal de Rumspringa ia ser tão sem gracinha!
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Texto escrito para o 6° Desafio Literário da Câmara dos Deputados - Etapa 7.
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