Tentando Se Matar

Acordou querendo não mais viver. Cansou. Do quê? Da vida. Ficou olhando pro teto tentando lembrar todas as formas possíveis de suicídio de que tinha conhecimento. Levantou e abriu uma porta do armário onde ficavam os remédios. Escolheu dois nomes diferentes e jogou dois comprimidos de cada um na boca. O gosto era horrível e ele cuspiu todas as drágeas e foi escovar os dentes. Passando o fio dental, decidiu se enforcar. Mas não tinha corda. Quem usa cordas em plena São Paulo? E onde diabos amarraria a corda pra fazer a forca em plena luz do dia? Logo algum intrometido apareceria pra estragar tudo, cortando a corda e etc. Cortar. Isso, cortar. Após limpar bem os dentes com o fio dental, alcançou um prestobarba com a mão. Olhou-se no espelho pela última vez. Uma olhada reconhecendo seu rosto pela primeira vez. Reconheceu que precisava dar uma barbeada. Jogou o creme de barbear no rosto e usou o prestobarba removendo os esparsos pêlos do rosto. Tomou banho e tentou se afogar no chuveiro conseguindo, no máximo, uma ardência na garganta por causa da água que entrou pelo nariz. Após o banho foi até a cozinha preparar o café. Abriu a saída de gás do forno, abriu o próprio forno e enfiou a cabeça dentro. Lembrou-se de que o gás havia acabado. Bebeu o café frio e foi até a estação de trem mais próxima. Pularia na frente do primeiro trem que passasse. O primeiro trem veio, veloz, inclemente. Decidiu esperar o outro. Tinha uma moça de cabelos dourados e vestido preto e brincos vermelhos roubando a cena na plataforma. Ela entrou no vagão e sumiu na multidão. Quando o outro trem veio, já era tarde demais. Ele tinha decidido pular de uma ponte pra cair no meio da avenida. Ficou encostado no parapeito olhando pros carros abaixo. Tinha altura de uns quatro andares, pensou ele. Seria suficiente? Uns policiais perseguindo um homem aparecem num dos lados da ponte. O tal homem não pensa duas vezes e bate a mão no parapeito pra impulsionar as pernas e se joga na avenida. Cai no canteiro central e fica se revirando no chão. Uma pequena árvore lhe salvou a vida. No entanto, algo branco e pontiagudo destacava-se em sua perna esquerda. Fratura exposta. Ele achou tudo aquilo muito deselegante e saiu de fininho de lá. Passando num posto de gasolina, decidiu comprar um galão. Viraria o galão em cima de si e riscaria um fósforo e queimaria até a morte. Mas no caminho até o campo de futebol de várzea onde viraria uma tocha humana foi abordado por um fulano pedindo a gasolina pra colocar no carro que estava parado, pifado, precisando e o fulano morava longe e estava sem dinheiro e etc. Ajudou e seguiu seu caminho e estacou na ponte em cima do rio mais podre da cidade. Cogitou a possibilidade de pular. Debruçou-se na amurada olhando a água passando lá em baixo. Verde. Um caldo viscoso de excrementos de todos os tipos. Garrafas Pet apressadas passando, ratos nadando perto da margem e um cadáver de cachorro inchado, como se estivesse prestes a explodir, enroscado numa árvore caída. Saiu de lá e foi até o caixa eletrônico do shopping center. Decidiu comprar uma arma na favela. Sacou do cheque especial os últimos quatrocentos mangos e encaminhou-se até a saída do shopping. No meio do caminho esbarrou na vitrine de um pet shop. Ficou encantado com três gatinhos que brincavam dentro de uma espécie de aquário. Os filhotes pararam de brincar de repente e estacaram olhando pra ele, meio que hipnotizados. Meia hora depois estava em casa com os três novos inquilinos. Haviam custado pouco menos do dinheiro que fora sacado e era pra arma. Desistiu do suicídio brincando com os gatinhos no tapete da sala. Recebia mordidas nos dedos e arranhões no antebraço. Pequenos arranhões vertiam um pouco de sangue e ardiam. Sentiu-se tão vivo como nunca. Assumiu, também, sua condição de covarde. Um suicida não é um covarde. Covarde é manter-se vivo mesmo querendo morrer, às vezes. É preciso coragem pra pular de uma ponte, dependurar-se numa árvore ou atear fogo no próprio corpo. "É bem melhor ser um covarde", pensou, enquanto debruçava sobre três pires e derramava leite pros bichanos. Deitou em sua cama e adormeceu com os nenéns, acordando às duas da manhã com o celular tocando. Olhou o número no visor e sorriu. "Alô". De vez em quando a vida parece valer a pena...

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 08/12/2010
Código do texto: T2659679
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