ENTRE A RAZÃO E A ALUCINAÇÃO

____________________________________________

 

Júlio Cesar Monteiro - um seminarista de boa prosa com quem convivi nos tempos do Colégio Arquidiocesano - acreditava que homenzinhos, de alguns milímetros de altura, viviam dentro de sua cabeça. Esses homenzinhos davam-lhe ordens expressas, centenas de vezes, horas seguidas, tanto de dia como de noite, até a exaustão. Tinha certeza de eram emissários do diabo para atormentá-lo, roubar-lhe a alma. Para mim - o único a quem confiou o segredo - eram meras alucinações. Para ele uma relação com forças sobrenaturais. No entanto, para além de suas alucinações e delírios, Júlio Cesar continuava o que era: um amigo culto e informado. "Minha mente é tão clara quanto à de qualquer outra pessoa", estava sempre a me dizer.

Os homenzinhos iam e vinham na cabeça dele. Por vezes, desapareciam por um bom tempo; porém, acabavam retornando ou ressuscitando. Em agosto de 1998, pouco tempo antes de nos dirigirmos ao refeitório, ele confidenciou-me que as vozes dos emissários do diabo tornaram-se um tormento insuportável.

Logo após ter me acomodado na cadeira do refeitório para o café da manhã, notei que o lugar reservado ao meu amigo Júlio Cesar estava vazio. Olhei para o coordenador (irmão Marista), através de seu vidro especial - sempre limpo a tal ponto que não se pode dizer que está ali – como que perguntasse se havia notado a ausência de Júlio. Ele balança a cabeça para mim em sinal de aprovação. Após o café, saímos a procura de Júlio Cesar e o encontramos caído no banheiro do dormitório; um filete de sangue escorria de seu ouvido direito. Rapidamente o levamos a enfermaria e ali ficamos aterrorizados. O meu amigo, num surto de delírio, havia introduzido, em seu ouvido, uma caneta (daquelas de invólucro metálico) ficando de fora apenas o espaço que ele utilizou para introduzi-la. Apesar da gravidade do ato, Júlio Cesar estava consciente e explicou que o fizera para calar as vozes dos homenzinhos. Mais surpreendente, ainda, foi o resultado da tomografia feita no hospital: apesar da caneta destruir seu órgão auditivo, não causara dano algum ao cérebro. Fora isso, foi retirada sem mais problemas.

Em outubro deixei o Arquidiocesano para voltar à civilização, a união do lar; e, nunca mais vi Júlio Cesar, que ficara em um hospital psiquiátrico a espera da salvação. ®Sérgio.

Leia Também: (clique no link)

Nem Freud Explica...

Vejo as Crianças como...

Nos Tempos da Ditadura.

Inventário de Equívocos.

__________________________________

Nota sobre o texto: Ouvir vozes na cabeça é tão comum que é considerado normal, segundo psicólogos. Uma pesquisa realizada na Holanda sugere que uma em 25 pessoas ouve vozes regularmente. Pesquisadores britânicos da Universidade de Manchester afirmam que, ao contrário da crença tradicional, ouvir vozes não é necessariamente um sintoma de doença mental. Algumas pessoas que ouvem vozes descrevem o evento como se alguém as chamasse pelo nome, mas quando elas vão atender descobrem que não há ninguém. As pessoas também ouvem vozes como se fossem pensamentos de fora entrando em suas mentes. Entretanto, Júlio Cesar não se enquadra em nenhum desses quadros, ele era portador de esquizofrenia.

1 - O nome Júlio Cesar é fictício. Tem a finalidade de preservar a identidade do verdadeiro Júlio Cesar.

Se você encontrar erros (inclusive de português), por favor, me informe.

Agradeço a leitura e, antecipadamente, qualquer comentário. Volte Sempre!

Ricardo Sérgio
Enviado por Ricardo Sérgio em 08/10/2010
Reeditado em 13/06/2013
Código do texto: T2545741
Classificação de conteúdo: seguro