Deslumbramento & Desilusão

Pela janela do ônibus eu a avistei parada num ponto, com uma expressão de quem está atrasada para um compromisso. Não dava pra olhar pra outra coisa: ela roubava a cena! Toda impaciente, olhando pra avenida, tentando avistar seu ônibus. Então o farol abre, o ônibus engata a marcha e eu consigo esquecer aquela estranha. Já no metrô, me sento ao lado de uma mulher com uma criança linda no colo, que sorria pra mim e se escondia no peito da mãe, depois voltava, ria pra mim e ia novamente pro colo protetor. Eu queria ter um filho e, do nada, me passou pela cabeça ter um filho com a moça atrasadinha do ponto de ônibus. Eu não era de todo provido de feiúra, tinha lá minha beleza em um ou outro traço e aquela menina era deslumbrante, de beleza inefável, que repelia até o mais cara-de-pau dos homens com sua aura desconcertante de super-fêmea. A porta do metrô abre e ela entra e senta no banco logo à minha frente. Usava um vestido vermelho dois palmos acima do joelho, salto alto e uma maquiagem leve que ressaltava seus traços de forma divina. Era uma deusa que descera do Olimpo. Esqueci a criança. Todos do vagão esqueceram tudo o que estavam fazendo ou pensando. Os homens a olhavam descrentes, mesmerizados. As mulheres variavam: olhavam com sincera admiração ou recatada dor de cotovelo. Aquelas pernas cruzadas, aquela panturrilha deliciosa, aquele olhar cheio de pressa, alheio a todos os outros seres humanos. Ela me olhou algumas vezes. Ou não. Afinal, tinha uma criança linda ao meu lado que também atraía muitos olhares. Levantei pra descer na próxima estação e ela também. Ficamos emparelhados em frente à porta. E, descaradamente, ela me cutuca no ombro e pergunta meu nome. Por alguns segundos até esqueci qual que era. Caralho, odeio ser surpreendido assim! Fico sem ação, até eu pensar em conseguir falar alguma coisa coerente sem gaguejar a pessoa já concluiu que eu sou um retardado mental solto nas ruas. Mas falei meu nome e ela perguntou para onde eu estava indo. Respondi, e ela falou que era perto do trabalho dela. Trabalho? É, ela era hostess, profissional da noite, sabe como é, né, lindo? Lindo? É, sei. Mas eu tinha que ir na casa de uns amigos antes e depois íamos pra festa de não sei quem, que era perto do trabalho daquela beldade loura e, sendo assim, ela foi para um lado da estação e eu fui pro outro. Cheguei na casa dos amigos e contei o que aconteceu. Desde a primeira visão no ponto, a minha inspiração quixotesca de ter um filho com ela ao momento que trocamos algumas palavras. Virei motivo de chacota por não ter pedido o número de telefone e sequer saber o nome dela. Mas eu sabia o lugar que ela trabalhava, já era alguma coisa. Fomos para a tal festa e era uma porcaria cheia de gente exibida ostentando roupa e teorias furadas e usadas e rererereusadas de filósofos europeus e a palhaçada toda. Um lixo. Saí de cena e fui andando pela rua e entrei onde a moça trabalhava. Ela não era hostess. Um segurança me falou o que estava rolando dentro do lugar. Desci uma escada e entrei num salão abafado, cheio de fumaça e a avistei sentada no colo de um gordo, com as pernas cruzadas bem no alto e com um peito pra fora. Pedi uma bebida e fiquei olhando. É, não seria bom ter um filho com ela. Seria um filho da puta. Um literal filho da puta. Já temos esse tipo de gente em excesso no mundo - inclusive aqueles analfabetos que descolamos o rabo de casa em pleno domingo chuvoso para colocar num cargo onde o desgraçado ganhará salários estratosféricos sem fazer porra nenhuma. Paguei a bebida e voltei pra festa decadente.

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 05/10/2010
Código do texto: T2539700
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