Pessoas

Ela tinha olhos grandes e redondos, bem redondos. Mãos tortas, cabelo crespo em total desalinho e babava. Faz tempo. Eu tinha medo dela, que torcia o pescoço das galinhas do vizinho. Mas faz tempo. Ela sumiu.

Era um negão careca, que sempre me dava beijos melosos no rosto. Ele abaixava e vinha com aquele monte de beiço babar em mim. Mas eu gostava daquilo, e sempre que chegava em casa ele estava na TV. Não era ele, mas o "Abuse & Use" era bem parecido. Ele sumiu.

Ela era negra e bem velha, e tinha toda a pele do corpo enrugada, bem enrugada. Eu tinha medo dela e a chamava de "Velha Coróca". Lembro da sua penteadeira com aquele potinho laranja de minancora que eu ficava cheirando. Lembro também de um dia ter visto sua bunda. Não tinha nenhuma ruga. Achei aquilo estranho. E nunca mais a vi.

Ele enchia as bexigas, deixava-as enormes e brilhantes. Beijava minha mãe nos lábios e me deu um carrinho de bombeiro que deixava a velha negra enrugada de bunda lisa doida da vida comigo. Ele sumiu.

Ele era amarelo e preto e seu nome era Negão. Tinha um focinho comprido. Chegou uma mulher (minha mãe?) com uns pães de leite com açúcar em cima. Negão foi indo atrás dela, farejando, e eu fui atrás do Negão, indo marcar meu rosto. Não me lembro de muita coisa, só dele virando e eu acordando com a minha mãe chorando olhando pra mim. Eu tinha umas linhas pretas no rosto. Pontos. Muitos. Negão sumiu.

Ele tinha um cabelo lisinho, grisalho, só usava calça de moleton. Algumas furadas. E ficava lá, todas as tardes, com um pedaço das bolas saindo da calça, fumando cachimbo e reclamando da vida, me chamando de Pica-Pau. Uma vez fui designado a segui-lo. Andei dois quilômetros atrás do velho, me sentindo O detetive. Ele tinha ido cortar o cabelo. Descobri logo cedo que a desconfiança entre um casal não tem idade. Ele sumiu.

Ela tinha cabelos vermelhos, os cabelos mais lindos e vermelhos que eu já tinha pousado a retina. Flutuava pelo pátio da escola, com seus esvoaçantes cabelos de fogaréu e emitia ondas de Luxúria que aparentemente só eu captava. Mas ela via além, deveria ler Darwin. Já era evoluída, preferia os caras do Segundo Colegial. Ou qualquer outro boçal que tivesse um veículo motorizado. Fiquei dois anos apaixonado por suas sardas, só ia pra escola para vê-la naqueles quinze minutos de intervalo. O dia que ela falou comigo foi no dia 11 de Setembro - AQUELE 11 de Setembro. Ela sumiu.

Ele garantia que já tinha transado com meia dúzia de garotas e que já gozava. E que seu recorde de punhetas passava das doze ou quinze; tinha parado de contar depois da décima. Eu não gozava e era mais velho, e não tinha transado com nenhuma garota - e nem beijado, também. Ele falava palavrão infinito, tinhas os melhores tios do mundo e via as bucetas das tias no banheiro. Ele tinha uma vida bem mais interessante do que a minha. Ele sumiu.

Ela me dava a maior força! A professora também me dava a maior força. Mas eu tinha desistido da escola. Não queria comprar os livros e não me enturmava e nem copiava a lição da lousa e quando a professora começava a falar eu simplesmente afundava a cabeça na carteira rezando pra hora passar. Mas ela me emprestava o caderno, me explicava a matéria, falava que faltava pouco pra escola acabar e que eu não podia desistir tão facilmente assim porque eu era inteligente. Eu a menosprezava. Não queria compaixão de ninguém. Um perfeito idiota. Quando saí da escola (ficando retido naquele ano letivo, claro) me lembrei dela. Deve ter sido a única pessoa que acreditou em mim até aquele momento da minha vida. Talvez até hoje. Ela sumiu.

Ele não tinha rosto. Simplesmente parou o carro e ofereceu carona para três moleques perdidos no meio do nada. A aventura não tinha saido conforme o planejado - Deus colocou um assaltante no caminho. Ele deu carona pros três moleques, não pediu nada, conversou, aconselhou e nos deixou na porta de casa. O estranho, que tinha um Del Rey. Ele sumiu.

Ela tinha uma voz mansa, calma, assistia todos os programas do Silvio Santos, comprava a Tele Sena e pedia para que eu conferisse os resultados, de hora em hora. Ela picava o frango bonitinho e jogava no prato, comprava oitenta pães na segunda e nós os comíamos até a quinta. Seu suco era horrível, pois ela abortara o açúcar. A moda, na época, era adoçante. Mas tinha que ser tudo do seu jeito, senão a tirania invadia suas fibras. Dali então ela mudava, gritava, chutava os cachorros, me batia com espada de São Jorge, me chamava de vagabundo, ouvia os hinos da igreja no último volume e arrumava confusão com os vizinhos da rua toda. Ela sumiu.

Ele fazia piadas o tempo todo, vivia sujo de graxa e cada dia que passava ficava com menos cabelo. Falava de mulher pra mim. Como era estar com uma mulher, apontava as mulheres na rua e exaltava uma ou outra qualidade da Senhora Mirada: as pernas grossas, a bunda gigante, os peitinhos bonitinhos. Eu adorava. Foi a primeira pessoa que falou comigo como um homem, não como uma criança. Até hoje eu vejo a preferida dele na rua. Ele tinha o sonho de comê-la. Eu a imaginava deitada na mesa com uma maçã na boca e ele raspando o garfo na faca com os olhos arregalados. Acho que não conseguiu devorá-la, senão ela não estaria passando na rua me olhando com volúpia quando estou sem camisa. Ele sumiu.

Ela, de todas as seis exuberantes irmãs, era a mais perfeita. Tinha uma pele lisinha, uma voz angelical, longos e lisos cabelos de um castanho clarinho e me tratava com doçura. Chegava tarde da noite naquela casa de madeira de dois grandes cômodos no meio de uma plantação de soja nos confins do sul do país. Eu sempre ficava do lado de fora, olhando as estrelas e acompanhando a luz fraquinha dos satélites vagando no Universo. No sul o céu tem mais estrelas do que aqui. Eu a esperava do lado de fora porque tinham fissuras na madeira e, encostando bem a cara, dava pra olhar lá pra dentro. Ela chegava com seu salto alto e com seu vestido que a embalava à vácuo e ia direto pro quarto. Eu apertava mais a cara contra a madeira. Ela fechava a cortina que separava os dois cômodos e jogava a bolsa na cama, sentava, tirava um salto, depois o outro, soltava o cabelo. Nessa hora eu arriava a bermuda até os joelhos e botava o pau pra fora. E apertava o olho. Ai ela se levantava e tirava o vestido, puxando-o de baixo para cima, fazendo seus lindos seios se elevarem levados pelo pano e depois cairem e ficarem flutando. No meio do delírio do onanismo, essa era a hora que eu derrubava a cortina e a jogava na cama, com o pau pingando de tesão, arrancava sua calcinha no dente e a possuía com se fosse a última transa da história da Humanidade. Ela nunca tirava a calcinha. Pegava a toalha, se enrolava, pegava uma calcinha limpa e ia pro chuveiro. O chuveiro era uma mangueira que saía do tanque, cruzava o lamaçal e ficava pendurada em cima de uma cabaninha de madeira. Era como um acampamento de guerra, aquele lugar. Um bivaque do tesão. Daí ela passava de toalha, com suas curvas sinuosas, com seu andar leve, com sua pele branca ressaltada e molestada pelo brilho da lua. Se trancava no banheiro, alguém ligava a mangueira e eu terminava a punheta ali mesmo, com os satélites registrando tudo e fazendo os caras da NASA terem uma história pra contar quando chegar em casa. Sempre que leio "A Mulher Mais Linda da Cidade" lembro dela. Ela sumiu.

Ele tinha um bafo horrível, um bigodinho cretino e suas roupas cheiravam gorfo. Aparecia caindo de bêbado, me chamava de vagabundo e apagava cigarros nos meus livros. No dia seguinte me chamava de filho, me dava beijos na testa e pedia pra eu ir no bar comprar cigarro. Fiado. Eu ia. Ele agradecia e jogávamos videogame o resto do dia. Mas domingo era sempre a mesma coisa. Ele ligava o maldito aparelho de som às dez da manhã e botava pra tocar toda a maldita discografia do desgraçado do Roberto Carlos enquanto enchia o cu de caipirinha. Conforme as horas iam passando e os discos iam sendo trocados, seu olhar mudava. Às dez era indiferente. Às treze brincávamos de lutinha. Às dezesseis fechava a cara e por fim, às vinte e duas eu era de novo o vagabundo, o maldito skatista vagabundo. Ele sumiu.

É muita gente que cruza meu caminho que me olha na rua e não me reconhece - ou finge que não me reconhece, porque talvez eu também finjo que não as reconheço.

É muita gente que aparece na minha vida com um cheiro; um cheiro invade o meu nariz e de repente vem na minha cabeça a imagem de um rosto que eu não consigo atribuir um nome, mas consigo lembrar tudo o que vivemos.

As pessoas vem e vão. Algumas que aqui relatei não me recordo do nome ou do rosto. Algumas eu cruzo todos os dias, outras vejo uma vez por ano. Algumas morreram por conta de doença ou acidente enquanto outras eu mesmo mataria se cruzassem meu caminho.

Hoje, um homem que me cumprimenta de forma esquisita e efusiva sempre que me vê - e que eu nomeio como "o pai da dentucinha gostosinha" - me ofereceu carona até o ponto de ônibus. Não sei, ele é estranho, parece saber coisas sobre mim que nem eu sei. Conversamos por dois minutos (que é o que a minha habilidade oratória permite, no máximo, antes que eu queira cavar um buraco e me esconder) e eu senti isso. Falar com ele me trouxe à memória muitas coisas que eu pareço ter vivido em outra vida. São vinte e poucos anos, mas parece uma eternidade. E, sei lá, parece que tudo o que eu vivi antes de me "tornar gente" foi algo REAL; algo que eu não ando sentindo ser. Parece que ando vivendo uma peça de teatro. Uma farsa. Escrevo isso pra registrar e vir ler toda vez que eu achar que não há mais motivo para acreditar nas pessoas e no mundo. Talvez eu volte à realidade, com isso...

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 02/10/2010
Código do texto: T2532877
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