Uma Vingança Digna de Cinema

A janelinha dela subia quando eu menos esperava.

- Oi lindo! (L)

- Oooi linda.

- Tudo bem com você?

- Ah, tudo. E aí?

- Também.

E fim de papo. Ela não era muito de falar. E às vezes eu não tinha muito tempo ou paciência ou ambos pra ficar puxando assunto. Eu acordava cedo pra ir trabalhar e de lá ia direto pra faculdade. Chegava em casa morto enquanto ela só fazia a faculdade à noite e por isso passava a madrugada inteira na internet e o dia inteiro dormindo.

- Fazendo o que da vida, lindo?

- Trabalhando feito um corno, estudando feito um filho da puta, essas coisas...

- Hm, legal.

- É, muito, adoro!

- Sério?

- Claro que não, mas fazer o quê?

Não, não nos conhecemos na internet. Atualmente isso tem acontecido com freqüência na vida de muita gente: conhece-se primeiro em sites de relacionamentos e depois marca-se um barzinho, cineminha, cafézinho. Motelzinho. A conheci numa tarde incerta no Parque do Ibirapuera. Primavera. Tentava esquecer os duzentos seminários, os duzentos trabalhos de casa, as oitenta decepções da vida quando uns estranhos me abordaram. Até então estava vivendo um pesadelo, uma merda de dia que eu tentei - sem sucesso - salvar andando de skate no solo sagrado da Marquise e minha cabeça pesava uma tonelada de problemas. Não conseguia me concentrar, botar foco nas manobras, sentir o vento no rosto, a vida caminhando suave sobre rodas e todas essas e outras maravilhas que o skate proporciona e optei por ficar sentado olhando o nada antes que acabasse me machucando ou ficando louco de ódio. Então veio o casal de bêbados:

- Aí, tem uma morena linda ali querendo te conhecer.

- Ela é linda mesmo?

- Irmão, vai por mim!

Bêbado, desconhecido. Por que ele estava tão crente de que poderia ter credibilidade com uma pessoa que a cada dia que passava ficava mais descrente e insatisfeita com a humanidade?

De qualquer forma, eu não tinha nada a perder e topei a furada e ele não estava mentindo: ela era realmente linda. Uma verdadeira beldade, esbelta, de longos cabelos pretos e corpo esguio, um sorriso de capaz de derreter qualquer coração de pedra e um jeito tímido que só me dava vontade de abraçá-la com a onipotência dos deuses para protegê-la de todo o mal do mundo.

Não se empolgue suspirando e achando que é uma história de amor. Ela não apareceu na minha vida pra melhorar tudo, dar sentido a tudo, ser o tudo. Esta é uma história cruel, de vingança.

Mulher quando quer, não tem jeito. E uma mulher daquelas, é óbvio, não aparece todo dia na sua frente "te querendo". Metade do tempo que passamos juntos foi sem contato físico. E 3/4 deste tempo foi de silêncio. E o 1/4 restante deste tempo era eu falando frivolidades banais, sabendo que a intenção de ambos era uma só: se pegar. Conversa era pra depois. E foi pensando justamente nisso que trocamos contatos: telefone, e-mails, MSN. A porra toda.

O beijo rolou e encaixou. Foi bom para ambos. Teve sintonia, lábios se desencontrando e alcançando pescoço, lábios se encontrando e se perdendo e línguas se cruzando e foi bom e trocamos algumas mensagens logo após o fortuito encontro.

"Nossa, adorei ter te conhecido. Você é lindo :)"

"Eu também. Salvou meu dia, de verdade, linda :)"

Rasgação de seda. Mas era sincera.

Continuava minha vidinha aos trancos e barrancos.

Trabalho:

- Você chegou atrasado de novo...

- É...

- Mas você prometeu que não ia chegar atrasado nunca mais.

- Sim.

- Então?

- Então que o meu intestino, o trânsito, o Metrô e São Pedro não prometeram a mesma coisa.

- Ahmmm...

Faculdade:

- Eae, fez a sua parte do trabalho?

- Qual trabalho?

- Do Gordão, mano. É pra entregar quinta agora!

- PORRA, nem lembrava.

E ela sempre aparecia com seus assuntos inexistentes e com o seu característico ar monossilábico.

- Saudades de você lindo!!!

- Sério?

- Sim.

- Ah, vamos sair?

- Siiiiiiiim *-* que dia?

- Humm... Hoje é segunda... Na quarta? Não vou trabalhar...

- Pode ser IUHU (emoticon rodando pompom)

- hahaha

Mas ela desaparecia na terça. Não entrava na internet e não atendia o celular e não estava em casa. Bem, era isso o que sua mãe dizia pra mim, no telefone.

O tempo foi passando e esse tal de marcar de sair acontecia pelo menos duas vezes por mês. Sempre com o mesmo desfecho: ela desaparecendo. Eu desmarcava com amigos, ficava pensando na roupa que iria usar no encontro. Todo um stress psicológico. Pra nada.

Terminei a faculdade, zerei minhas contas assim que entrei num emprego que me pagava cinco vezes mais do que o anterior. Tinha mais tempo e mais dinheiro. Comecei a treinar musculação com mais afinco, fiz uma tatuagem, comprei um carro do ano. A vida finalmente mais tranqüila no âmbito financeiro - e, por conseqüencia, no psicológico também. Status quo.

Ela começou a ficar mais falante nas conversas. Seu número começou a figurar na minha caixa de mensagens no celular. Me mandava e-mails fofos, me ligava na alta madrugada. Se preocupava comigo.

- Linda, vai fazer alguma coisa quinta à noite?

- Depende rs

- Haha Quero ir ver uma peça. Vem comigo?

- Ai, não sei se gosto de teatro.

- Compreendo.

Compreendia que pra uma pessoa com a estrutura cultural e intelectual de assistir "BBB" não gostar de teatro é perfeitamente natural - e previsível.

- Olha - insisti - já tem quase um ano desde que a gente se conheceu e a gente nunca mais se viu. E durante esse quase um ano você sempre sumiu quando a gente marcou alguma coisa. Se você recusar esse convite, pode esquecer que eu existo.

- :O

Fiz o drama.

- Então, posso te buscar?

- Me buscar? Você tem carro?

- Tenho, ué.

- *-*

- hahaha

Fui buscá-la. Morava longe pra cacete, numa cidade da Região Metropolitana de São Paulo. Mas eu fui buscá-la na porta de casa. A mãe dela, que conheci no dia do Ibirapuera se lembrou de mim e me deu um abraço. A peça começaria às 20:00h. Peça engraçadinha, cheia de tiradas sarcásticas, bem urbana, realista. Ela bocejava sem parar. Saímos do teatro e fomos comer alguma coisa. Eu pagando tudo. Não era do meu feitio ficar bancando mulher, mas naquela noite eu fazia questão. Eu tinha um objetivo, uma meta.

Saímos do restaurante caro e ficamos queimando gasolina (a minha gasolina, colocada com o meu dinheiro). Paramos numa rua de classe média alta e começamos a nos amassar dentro do carro. O que eu posso dizer? Ela era peça única, única, unicamente peculiar, unicamente singular e única. Continuava a mesma beldade que conheci, senão mais endeusada pelos meses que nos separaram. Brincos no porta-luvas, arranhões nas costas, canelada no volante e acabamos entrando num motel. Essa era a última coisa que eu esperava dela. Tinha um ar de virgem, de mina dificílima de ceder. Mas estamos no século XXI. Não há mais ar virginal. As mulheres impregnam o ar com o que elas querem dar por entendido e os homens, boçais seres que sempre se julgaram dominantes, ficam para trás, inertes, confusos, sexo secundário, fraco e oprimido por mulheres-macho, por cópias de Norma Lúcia da vida.

Era uma fera na cama. Uma emissária da Luxúria da mais alta patente. Uma ninfeta perversa, agressiva, virava uma vagabunda angelical que oscilava entre gritos e sussurros, caras de devassidão e de inocência e toda a gama de antíteses possíveis no que se refere à uma bela trepada.

Prometi à mãe dela que a deixaria na porta de casa sã e salva antes da 1 da manhã.

O relógio apontando que já era meia-noite.

Tomamos um banho apressado e voamos pra dentro do carro, exaustos e sorridentes.

Dirigi o mais rápido que pude. Mas ia no destino contrário da casa da garotinha e ela, como previsto, nem reparou em mero detalhe. O velocímetro marcando 150 km/h e eu pisando mais e mais no acelerador, em pleno êxtase, pronto pra explodir o motor, fazer as calotas ganharem vida própria na estrada mal iluminada. E ela comendo o chocolate caro que pediu com olhinhos do Gato de Botas e eu não resisti e comprei. Com os pés no pára-brisa. Não usava cinto. Lembrei de um filme do Quentin Tarantino. Death Proof.

Após 40 minutos dirigindo feito um louco, podendo pegar uma prisão perpétua por excesso de velocidade, vi a placa que estava esperando: "Retorno a 1 km".

Reduzi. Fui reduzindo. Noite escura, meio do nada. Fui reduzindo. 90, 60, 40, 30, 20. 0.

Destravei as portas.

- Cai fora.

- Oi?

- Isso mesmo que você ouviu, pula fora.

- Como assim?

Sua voz tremia, seus olhos se esbugalharam e fiquei tentado à desistir da idéia e abraçá-la pra sempre.

- ASSIM: VAZA DO MEU CARRO, SUA PUTA!

- ESPERA, o que eu fiz? Por que isso?

Começou a chorar. Me senti perverso.

- É, é isso mesmo, sua putinha do caralho, desce e vai dar pra outro, acabou o seu programa.

- SEU DESGRAÇADO OLHA COMO VOCÊ FALA COMIGO!

- Eu falo com você do jeito que eu quiser! Agora SAI antes que eu te desça a porrada.

- Não vou descer! Me leva pra casa! Vai!

Apontei uma bela balisong pra ela, fiz a minha melhor cara de filho da puta maldoso e falei:

- SOME DA MINHA FRENTE!

Ela abriu a porta, chorando desesperadamente, confusa, desceu, bateu a porta e tentou abrir de novo, mas já estava travada novamente. Batia com o bico do salto no vidro, me xingava, implorava e eu nem aí: já tinha assistido a peça, estava de barriga cheia e já tinha gozado. Ela tinha deixado o chocolate no banco que antes ocupara. The good life.

Entrei no retorno e pude vê-la do outro lado, andando na direção que os carros iam - talvez tentando me alcançar.

Me sentia maravilhosamente bem e comecei a cantarolar Lobão:

"Tava queimando no meu carro

A tal da gasolina

E, do meu lado, meu amor me avisou

Vou sair de cena

Me deu um beijo na corrida

Correndo ela sumiu

Desceu voando a escadaria do metrô

Cena de cinema"

Cheguei em casa um tempo depois e abri o e-mail, digitei o endereço dela e teclei:

"Oi linda. Espero que você possa ler esse e-mail. E bem, se você está lendo, a brincadeira não foi tão ruim assim, vai? HAHAHA

Sabe o que é? O que foi? Qual é o meu problema?

Eu não consigo acreditar muito nas pessoas, de tanto que elas me decepcionaram, decepcionam-se em tempo integral, etc. Claro que eu vivo decepcionando os outros. Mas o problema é que tem algumas que me cativam de alguma forma instrínseca e que eu não consigo mudar e por mais que elas me decepcionem, não consigo 'me decepcionar', entende?

Você é uma destas pessoas! Não é porque você é linda. Já conheci muitas mulheres lindas, mesmo depois de você, que chegaram e partiram. Normal.

Não sei o que você tem que me cativava tanto. A gente marcava e eu me sentia bem, inspirado, via sentido na vida. E você sumia. E isso acontecia com freqüência.

Invariavelmente eu dou poucas chances para este tipo de coisa e fico com preguiça das pessoas que 'somem'.

Dei mil chances à você. E nosso encontro aconteceu só agora: que tenho grana, que tenho carro, que meu braço tem o dobro do tamanho do ano passado e tá todo colorido.

Eu quis acreditar que eu te inspirava algo estranho, assim como você inspirava em mim, mas eu constatei que não.

E te deixar no meio da estrada à duzentos quilômetros de casa foi o troco pelas mil decepções que eu tive por sua culpa.

E do mesmo jeito que você ria escondida de mim com as suas amigas, agora o mundo vai rir da sua cara, pois vou relatar tudo o que aconteceu entre nós naquele meu perfil no site de escritores que você tratava com desdém HAHAHAHA

Um beijo,

Atenciosamente,

"Seu LINDO"".

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 16/09/2010
Reeditado em 16/09/2010
Código do texto: T2502632
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